domingo, 27 de outubro de 2013

A Hora do Nada

A violência doméstica continua a ser um crime que toca todas as classes sociais, raças e credos. Escrevi este livro há tantos anos e preparando mais um ano de apresentações e mini-conferências dou-me conta de como infelizmente o tema  continua tão actual. Deixo-vos, hoje na mudança das duas para a uma da manhã, nos sessenta minutos que não existem, o conto A HORA DO NADA. Sempre que acontece esta mudança de hora, em que recuamos uma hora nos nossos relógios e nas nossas vidas, a minha imaginação mais que fértil dispara nas múltiplas possibilidades do que pode ou não acontecer a cada um de nós numa hora que não existe e que de uma forma utópica mude a forma de estar e ser para sempre. É claro que esse momento nos pode surgir em qualquer hora de nossas vidas, mas muito mais poético se for naquela hora mágica que só se designou existir uma vez por ano, poético e definitivamente uma excepcional história para, um dia contar aos seus netos.
Não seria o caso de Sandrine, se fosse o caso desta minha personagem ser real. É uma das muitas caras sem rosto que dão cor ao meu livro «MAL ME QUERO» que sendo um romance de ficção, aborda realidades vividas por muitas Marias e Sandrines. Nem sempre mulheres, nem sempre Marias, e sim, também o reforço no meu livro com personagens masculinas, apesar de o rosto mais visível da vítima da violência doméstica seja o feminino.
Deixo-vos com a Sandrine, quiçá para ser lido na hora do nada deste ano, acompanhado pelo som de Zero 7 - um dos contos do meu livro «MAL ME QUERO» - A hora do nada.

Zero 7 - Distractions

A Hora do Nada 
por Ana Martins

Sandrine convenceu-se que não tinha acontecido. Até porque fora só daquela vez e aquela vez não tinha existido.
Engraçado os mecanismos que a nossa cabeça arranja para se defender do lixo mental que não queremos ver, ouvir, cheirar, sentir, menos ainda saborear.
O Ruben tinha aquele hábito horrível de beber bagaço com a bica do jantar. O pai dela também o fazia, quando imigraram para França, dizia sentir-se mais português por comer bacalhau, chouriças e beber bagaço. Esse era um fedor que se lhe entranhava nas roupas, junto com esse, o do tabaco dos outros da taberna, entrava pela cama lavada a cheirar a alfazema e roubava-lhe o odor a casamento feliz que tanto queria sustentar.
A mãe e o pai ainda tinham um casamento composto, tinham lá as suas coisas, mas qual o casal que não as tem? Viria a ser assim com o Ruben também. Era um bom homem, amigo de trabalhar, um bocado rude devido à educação que tinha tido. A princípio, quando vinha nas férias, até o achara peculiar e pensava que se poliria com o tempo, o convívio e o ficarem juntos em Portugal.
Mas era o Portugal dele. Não o seu. Não agora.
O marido era de perto da terra dos seus pais, uma zona de quintas bem perto de Lisboa. Visitavam os avós todos os verões, no mês habitual e o namoro com o moço despontou. Coisa de miúdos, quando se encontravam nos passeios de bicicleta, pelas pequenas florestas onde depois brincavam. Sandrine recordava-se sempre das histórias de bruxas quando passava por lá, devido ao marulhar esfregadiço das folhas quando havia vento.
Só nos seus 16 anos levararam o namorico da menina mais a sério num amargo fim de Agosto: Sandrine não queria, porque não queria voltar à França deles e pedia: porque não ficava a viver com os avós? Nascera lá, mas o coraçãozinho de jovem ficara só às últimas chuvadas de Verão porque os pais não permitiram que a sua menina de ouro interrompesse a escola e o sonho de a vir a tornar alguém na vida. A promessa de trabalho dos tios do marido, o sonho adolescente de um casamento perfeito e um irredutível Ruben de mochila às costas frente à casa dos pais sem aviso prévio, fizeram-na deixar os pais aos dezoito anos e vir para uma terra que nunca viria a sentir sua.

Três filhas depois sentia-se sugada, estupidificando a cada dia, numa casa sem graça no bairro escuro, como se um vagaroso torpor tomasse lugar da menina inteligente para os livros de escola, enquanto a sua bicicleta enferrujava nas traseiras do quintal.
Aquela noite não tinha existido. Não naquele momento mágico em que a hora de Inverno anda para trás e por isso mesmo nada tinha acontecido. Todos os dias pensava nisso e tentava focar-se apenas na ideia da hora que não tinha acontecido, por isso era tão fácil convencer-se! Contudo, nada ficou igual depois dessa hora em que nada, mas tudo aconteceu.

O Ruben chegou da taberna tarde como vinha sendo habitual. Estranhou quando o ouviu dar uma volta na fechadura da porta do quarto, apenas cerrou mais os olhos, encostou o nariz no lençol e fingiu dormir, como já se tornara seu hábito, tentando reter a lavanda nas suas narinas.
Só teve tempo de estranhar ele não se sentar pesadamente do outro lado da cama e atirar com as botas sem pensar que por baixo dormiam vizinhos: Estava do seu lado da cama e...
Pôs as mãos dentro da sua camisa de dormir e... fez o que não lhe foi muito confortável.
Sabia o nome da coisa, porque tinha dito veemente e repetidamente NÃO.
Honoré de Balzac dizia «Pode-se perdoar, mas esquecer, isso, é impossível.» Sandrine tentava esquecer, tentava ferozmente esquecer, sem se dar conta que nem perdoar conseguia. Talvez o que mais lhe custava desculpar fosse aquele momento, logo no inicio, quando se debateu, fechou as pernas e disse, “NÃO FAÇAS ISSO”, a valente chapada na cara e aquela voz bagacenta a ordenar: “ESTÁ QUIETA!”
Está quieta...?
Como se não fosse dona do seu ser, do seu querer ou não querer.
Não se ajeitou, tão pouco lhe facilitou a coisa. Parvamente recorda quando, desesperada, olhou para cima e na escuridão do quarto viu o neon da luz do despertador e se recordou que teria de mudar a hora.
Depois...
Quando ele saiu para o toillete, rolou na cama e limpando as lágrimas com o pulso dorido, recuou a hora do despertador. Esboçou um sorriso tonto e tentou evadir-se para o campo ensolarado lilás da plantação de alfazema que havia na propriedade onde os pais trabalhavam na sua França enquanto apertava o relógio contra si. Foi a primeira vez que lhe ocorreu esse pensamento a que se agarrava até hoje: A hora do nada. Porque se não existira, logo, nada se passara!
Havia ocasiões em que ponderava e a culpa era dela. Era um dever conjugal a que se esquivava frequentemente quando o Ruben bebia e, verdade se diga, recusava muito. Não suportava aquele cheiro a entrar-lhe pelas narinas e a bloquear-lhe a libido. Era mais fácil fingir que dormia e dormia muito.
Nunca falaram sobre aquela noite.
Ele solicitava e ela não se debatia. Assim. Função cumprida. Todos os dias.
Até que uma noite – daquelas em que Sandrine agora dormia mesmo muito com uns comprimidos que, entretanto, comprara – acordou e não o sentiu na cama a seu lado.
Nessa noite em vez de sentir alívio por ele não estar a seu lado... gelou.
As meninas.
Sorrateiramente foi espreitar o que podia estar a acontecer, mas um sonoro sopro anal vindo do toillete anunciou a localização de Ruben.
Entrou no quarto das meninas e foi beijar e aconchegar uma a uma no soninho descansado. Cheirinho a Alfazema. Perfumava-as sempre depois do banho antes de as deitar. E se... Não. NÃO!
Sabia que no bairro havia uma Associação de Imigrantes. Sabia que eram bastante activos com a população em perigo, não iriam negar ajuda a uma mãe com três filhas, como tinha conhecimento não negavam a ninguém. Uma vizinha cabo-verdiana perto dela andava a ser ajudava por esses senhores da associação, a outra família lá além também e percebia claramente tanto empenho e dedicação.
Deu duas voltas à chave do quarto das meninas e deitou-se na cama com a mais pequenita. Inspirou bem profundamente o ar impregnado de lavanda.
Não pensou no que tinha de comprar na mercearia na manhã seguinte: Mentalmente soube onde iria assim o sol amanhecesse.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sexo no Autismo, acontece...?

Perguntavam naturalmente ao Pedro se já tinha namorada. "Eu não!!," respondeu com aquele ar absolutamente imperturbado, "e depois tinha de fazer sexo com ela...!!" 
Claro que é anedótico e nos rimos - por vezes as famílias de autistas riem de coisas muito diferentes - mas se olharmos com seriedade para cada detalhe na convivência com um miúdo autista, podemos retirar aprendizagens inusitadas. 
Então os autistas não gostam de sexo? 
Se até os bichinhos gostam… 
Lá entramos de novo nas terras pantanosas dos tabus de que não se fala, não se diz. Pois, mas eu falo, questiono outras famílias, quero saber. 
Com o meu filho fica fácil, porque sempre me contou tudo, mas resguardo as nossas conversas. 
Que serviram de base para construir a personagem autista Xico? Sem dúvida que recheei as falas e pensamentos do Xico com as frases excepcionais do meu Pedro, mas o leitor nunca sabe se é o meu processo criativo, se é copy-paste do real. Benefícios de quem connosco priva, apenas.
Mas os autistas, são assexuados, é isso? Não. Ora, seria tão simplista...
Pela minha observação constato que na deficiência o preconceito impera, se confunde sexo com sexualidade, erotismo com inocência, que os julgam erroneamente por um todo, que decidem a bel-prazer apontando o dedo que neste caso é   assexuado ou neste outro só poderá ser hiperssexualidade! Não se pode colocar numa só embalagem com a mesma etiqueta tantas existências, tantas formas de ser, sentir e ver o mundo. 
Não me canso de repetir que se cada indivíduo formula o mundo num olhar diferente, tanto dos neurotípicos como dos seus pares e que, se a vida é absorvida, compreendida de uma maneira tão casuística, porque encarariam este tema em particular em bloco de forma una? 


No livro "AUTISTA, QUEM...? EU?" para além do Xico, mencionei um senhor dentro do espectro do autismo que até tinha conseguido casar e ter uma vida conjugal, mas que a determinada altura se decidiu divorciar, e ao anunciá-lo a sua mulher chorou. Resposta dele? "Não te preocupes, eu arranjo outra..." Mais uma vez o nosso olhar neurotípico acha hilário, mas o twist prende-se num detalhe único que faz toda a diferença. A intimidade. O toque. O dar e receber. O pensar no outro. O amar o outro.
É tudo tão arredio do autismo...
Daí ser até natural pensar: são assexuados. Mas o lado físico da pessoa com autismo cresce e nas idades certas acontece o mesmo que nos neurotípicos. É então que sucede, a quem destas pessoas cuida, a negação da sexualidade, o infantilizar das atitudes e um virar a cara para o outro lado. Para mim não faz sentido.
Sei que o meu filho já esteve verdadeiramente apaixonado - não vos vou contar detalhes, mas sentiu as tais borboletas no estômago, sofreu ao se ver trocado e foi à luta pelo que pretendia. Visto aos olhos da normalidade?, seria mais um de tantos namoricos, mas foi para mim emocionante e também muito divertido presenciar a ausência de malícia sem joguinhos de sedução e directos no ponto. Autistas até à quinta casa!, mas terrivelmente coerentes e correctos. Foi uma lição. Vi o meu filho feliz. E isso sim, para mim fez todo o sentido.
A forma como a sociedade repudia e estigmatiza as manifestações sexualizadas a estas pessoas, causa-me uma certa revolta. Muitas das acções que consideram ter uma carga sexual, serão as que não são pelos neurotípicos encaradas como tal, vá... vou considerar como um piropo: pode ser inofensivo e até nos fazer sorrir.
 (imagem de dois actores brasileiros não-autistas)  
Há quem passe por nós e nos afague os cabelos, ou simplesmente nos cheire os ombros. De notar que no autismo as sensações, as texturas, o odor, os sentidos são exacerbados, têm uma maneira tão diferente de sentir. 
Então serei eu que tenho dificuldade em aceitar que determinado gesto tem uma conotação sexualizada? Terá? E que seja...! Incomoda-me? Não. Deixo-me ser tocada, cheirada, afagada. Sinto que estarão a percepcionar o meu Eu. Tão simples como isso. Se não sinto erotismo no gesto, como o vou conotar como tal, só por não ser neurotipicamente falando aceitável? Há tantas acções (ou piropos) de neurotípicos que não considero de forma alguma normais e ainda assim são por outras pessoas conotados como aceitáveis...! 
Se é tudo tão relativo, porque não aceitar a diferença na diferença? 
Eu vejo desta forma: gosto dessa proximidade que é momentânea e por vezes, mágica. Já outros gestos ou acções denotam o que identificamos com clareza: uma erecção, ou a intenção de passarem a mão pelo nosso peito. Como reajo? Afasto a mãozinha antes de chegar lá, como faria a qualquer neurotípico! Com grande grau de probabilidade com um neurotípico eu sei que não seria tão afável.
Se pensarmos quantos ditos normais existem com transtornos inadequados para consolidarem um relacionamento amoroso... Porque todos nós temos pontos menos bons, quantas vezes nem disso somos totalmente conscientes ou racionais, e no entanto esses factos não interferem negativamente na satisfação entre um casal. No autismo - especialmente nos indivíduos com Síndrome de Asperger - pode até haver um desejo de ir ao encontro do outro e, porque não?, de ser amado, mas não haverá motivação suficiente porque acreditam que, se o fizerem, serão estigmatizados a partir dos padrões que lhes são impostos, por seus cuidadores e pela sociedade no geral. 
Tenho pena que não se invista no amor e sexualidade no universo autístico e simplesmente se entre no facilitismo de lhes prescrever medicação para 'acalmar as hormonas'. 
A meu ver, não se deveria infantilizar adultos. Têm direito à sua vida plena. Mais. Esta minha interrogação acerca do poder do amor e dos relacionamentos amorosos poder ser uma das improváveis mas possíveis soluções, vindo a abrir a porta ao desenvolvimento de comportamentos  sócio-comportamentais adequados e porque não, melhoramento dos cognitivos, apenas porque estão felizes...? Não seria caso de se ponderar sobre o que aconteceria?



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Falar de Autismo

Amanhã dia 24, pode marcar na agenda ou programar o seu televisor por volta das 4 horas, canal SIC, programa BOA TARDE. Vou falar de autismo, ser entrevistada por Conceição Lino. A Paula Castro, minha amiga e companheira  de vivências paralelas também irá. O paralelismo começa na franja ruiva, mas não termina por aí. 

Apesar da temática ser o autismo, vamos abordar um recanto escondidinho, silenciado e... eu sei que quer saber, mas para o conseguir, vai mesmo ter de esperar até amanhã para ver tudo em directo, ou quem sabe, mais tarde num link perto de si. 


e o vídeo (completo) de dia 24 Setembro no BOA TARDE




sábado, 21 de setembro de 2013

Faço 50

Faço cinquenta anos e a pergunta que me apetece fazer é:
Qual seria a tua idade se não soubesses quantos anos tens?

A facilidade que seria responder que todo o mundo diz que não aparento a minha idade... nas tenho-a, e sinto-a bem real nos achaques que não vão embora com a facilidade que tinha aquando dos vintes. 

Faço cinquenta, e não os vejo como o cliché do marcante passar meio século, nem me revejo na imagem difusa de criança que visualizava esta idade já envolta em entorpecidas rendas e olências cânforadas. Será um dia como os outros? Não. Eu adoro fazer anos. É sempre um dia especial.
Acontece que desta vez é estranho. Eu sou uma pessoa intensa - só sei pintar da cor que enche tudo - não passei pela vida incólume e esta entrada numa nova década que deveria ser marcante, que não me diz nada por antecipação, mesmo sendo arredia a qualquer lugar-comum, arrasta-me para um amargo sabor de desenxabido guião inacabado.
Penso que vou deixar-me ir.

Certamente que se em 50 anos não fui nunca de me preocupar com o futuro, não será agora que terei essa filosofia de vida.
Com os quarenta, a maturidade aterrou, mas não foi ao soprar velas, nem pela passagem de um dia no calendário setembrino. Foi chegando, enroscando-se sem avisar e chega-te para lá que me instalei. Eu cresci. Sem pressas, sem tumultos. Um dia dei-me conta que a tal criança interior de que tantos falam em reter, já não era mais pirralha. Foi um processo tão natural como bonito.
Com os cinquenta, e já que expectante não estou, presumo que seja a época de aproveitar a vida. Definitivamente esse seria o desejo, caso soprasse velinhas.
Paz. É um desejo interior e antiguinho. A sugestão de estar descalça no corpo todo, agrada à pirralha que cresceu.
Porque mesmo sabendo que faço cinquenta, se não o soubesse, possivelmente situaria a minha idade noutra faixa etária. Talvez porque a Ana-Mãe prevalece à Ana-Mulher, até à Ana-Profissional e essa preponderância faz com que haja ainda muita estrada para caminhar, desafios a concretizar, vida a ser vivida.
É o que anseio. Tempo com qualidade para o poder, por fim, fazer.




sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Viu uma pessoa com autismo na rua? Então comporte-se.

Uma pessoa com autismo pode provocar a maior confusão ao seu redor, é um facto, mas não é por isso que deixam de ter direito ao estar em público sem ser olhado de esguelha. 
As pessoas sem autismo, as que habitualmente são chamadas de 'normais' a estarem devidamente informadas, saberiam distinguir uma birra de uma crise num autista - parecem iguais, mas se o autismo fosse tão fácil de gerir como uma birra...
Pessoalmente, não me incomodo de dia após dia, explicar, consciencializar o mundo que me rodeia dessa diferença. Castigador é o olhar injusto e condescendente com que mimoseiam as famílias, que sim, precisam de ajuda, mas definitivamente dispensam a comiseraçãozinha.
 
Os autistas têm uma tolerância menor a ambientes com muito estímulo e que não lhes dá segurança nem familiaridade. Vejamos um exemplo clássico de situação de stress: 
Uma criança com a mãe num supermercado - quem estiver ao redor pensa erradamente 'esta mulher não sabe educar o filho'.

Acontece que estas mães, já sofrem muito com o momento em que ainda têm a lista de compras na mão e o filho já está a contorcer-se no carrinho ou com os gestos estereotipados que anunciam o fim do prazo de validade da tranquilidade. O filho quer comer um chocolate da prateleira, com papel e tudo?, ou corre desalmadamente nas escapadas que fazem pelos corredores, obrigando a uma perseguição (quantas vezes de salto alto) desde os detergentes até ao corredor dos brinquedos? Pois, acontece, e o seu olhar punitivo não ajuda, pense antes em dar uma mão... sim, ajudar. Afinal, não são extraterrestres! 
Num mundo ideal, estas famílias certamente até evitariam estes momentos, mas o autismo vive de mão dada no nosso dia-a-dia, não naquela redoma cristalina, protectora dos momentos complicados. Pois, é, lá se vai um mito urbano... Os autistas não vivem no mundinho deles, vivem no nosso! E no nosso, vamos todos às compras, algo que esquecemos e precisamos e sim, levamos os filhos. 
Leva os seus filhos nas idas à praia? Os pais dos autistas também. Que fazem barulhos, passam por cima das toalhas e enchem-no de areia? É verdade. Se for um autistinha lindo de 3 aninhos é tão engraçadinho, não é? Se tiver 8 olha-o de lado e julga os pais pela falta de propósitos. 
Se já for adolescente, faz o quê? Enfrenta-o? Pensa em dar-lhe um estalo? 
Pense melhor. 

As famílias dos autistas vivem além da problemática toda, este estúpido preconceito. Respeito. É tão simples. Se a população em geral conhecesse melhor o que vem a ser realmente o autismo, certamente passariam a respeitar mais estas famílias. A consciencialização da sociedade civil é assim a meu ver um tema urgente. 
O medo do desconhecido cria falsas verdades (acreditem - os autistas não são todos como o Rain man), gera uma distância entre as famílias, o círculo de amigos, a vizinhança. Ninguém merece. 
Há um lado absolutamente fascinante no autismo, na forma como vêm o mundo, é claro, se tiver a leveza de se deixar ir e tentar compreender a formulação mental que fazem. Cada um é diferente do outro, basta terem fascinações diferentes que nada é igual. 
Deixe-se envolver, deixe-se contagiar, deixe-se sorrir para com estas vidas que apenas são diferentes: dê a mão - dê uma mão que a malta agradece. 

esta é uma exposição pública, uma declaração de interesses assinado por Tina Moreland 
Se ele se atira para o chão a gritar e a espernear porque não há douradinhos, é apenas a maneira dele lidar com a situação. Tenha calma, já vai fazer o seu pedido.  
Se ela bate com a cabeça e começa a agredir-se no rosto, não fique aí especado a olhar, é apenas a frustração dela. Deixe a mãe lidar com isso, de resto vê isso todos os dias. 
Se o pai está a cortar a comida do jovem, não o está a tratar como um bebé, apenas não quer que o seu filho se engasgue. 
Se ela ignora o seu filho no parque, não é mal-educada. Só não é boa a interagir. Adoraria brincar com o seu miúdo se ela soubesse como o fazer. 
Ele pode ser crescido para ir no carrinho das compras, mas não, não se trata de ser preguiçoso. Ele quer cirandar e a mãe precisa de fazer as compras e hoje não está com tempo ou disposição para andar a correr atrás dele. 
Se ela tem de ser arrastada aos berros, é porque provavelmente teve uma crise. Vá, seja gentil, abra-lhes a porta e não fique aí a olhar de esguelha ou a sussurrar. E não, certamente não é porque não obteve o brinquedo que queria. Olha se o autismo fosse assim tão simples! 
Não fale com ela como se fosse uma criança, a não ser que o seja. Não grite porque não é surda. Pode até nem falar, mas compreende tudo. E não, não é má-educação, no caso a disciplina não vai ajudar. 
Isto é autismo, é a vida dele. Não o julgue, porque ele não o está a julgar. 


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Violação no masculino

Hoje aqui temos um post do Blog BULE VOADOR.
É um texto avassalador, um tema que entra no universo sombrio a que chamo de 'verdade calada'. E porque devemos dar voz a estas realidades sofridas, descalças no repúdio silencioso de vidas arruinadas, republico-o na íntegra, não me atrevendo a acrescentar uma vírgula.


O estupro de homens

Autor: Will Storr
FonteThe Guardian
TraduçãoLuiz Henrique Coletto
Violência sexual é uma das mais terríveis armas de guerra, um instrumento de terror utilizado contra mulheres. Contudo, grandes quantidades de homens também são vítimas. Neste relato pungente, Will Storr viaja para Uganda para se encontrar com sobreviventes traumatizados e revela como o estupro de homens é endêmico em muitos outros conflitos do mundo.
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Morrendo pela vergonha: uma vítima de estupro do Congo, atualmente vivendo em Uganda. A esposa deste homem o abandonou, pois ela não podia aceitar o que havia acontecido. Ele tentou cometer suicídio no final do ano passado, 2010. Foto: Will Storr for the Observer.

De todos os segredos de guerra, há um que é tão bem guardado que existe sobretudo como um rumor. É frequentemente negado pelo criminoso e sua vítima. Governos, agências humanitárias e ativistas de direitos humanos das Nações Unidas  mal reconhecem sua possibilidade. Ainda assim, de vez em quando alguém reúne coragem para falar sobre isso. Foi isso que aconteceu numa tarde comum no escritório de uma gentil e cuidadosa conselheira em Kampala, Uganda. Eunice Owiny foi empregada pelo Projeto Legal de Refugiados (RLP) da Universidade de Markerere [maior instituição acadêmica de Uganda] para auxiliar pessoas desalojadas por toda a África a lidarem com seus traumas. Este caso em particular, entretanto, era um enigma. Uma cliente mulher estava com problemas maritais. “Meu marido não pode fazer sexo“, ela se queixava. “Ele se sente muito mal com isso. Estou certa de que há algo que ele está escondendo de mim.
Owiny convidou o marido para entrar. Por algum tempo, eles não chegaram a lugar nenhum. Então Owiny pediu para que a esposa saísse da sala. O homem então murmurou misteriosamente: “Aconteceu comigo.” Owiny franziu a testa. Ele colocou a mão no bolso e tirou de lá uma espécie de velho absorvente. “Eunice“, ele falou, “Estou sentindo dor. Eu tenho que usar isso.
Deixando aquele absorvente coberto de pus na mesa à sua frente, ele contou seu segredo. Durando sua fuga da guerra civil no vizinho Congo, ele foi separado de sua esposa e capturado por rebeldes. Seus captores o estupraram, três vezes por dia, todos os dias, durante três anos. E ele não foi o único. Ele assistiu a homem após homem serem pegos e estuprados. Os ferimentos de um deles eram tão graves que ele morreu numa cela em frente à dele.
Aquilo foi muito difícil de lidar para mim,” Owiny me conta hoje. “Há certas coisas que você simplesmente não acredita que possam acontecer a um homem, você entende? Mas agora eu sei que violência sexual contra homens é um grande problema. Todos ouviram as histórias das mulheres. Mas ninguém ouviu as dos homens.
Não é apenas no Oeste da África que essas histórias permanecem desconhecidas. Uma das poucas pesquisadoras que lidou com o tema com alguma profundidade é Lara Stemple, do Projeto Legal em Saúde e Direitos Humanos da Universidade da Califórnia. O estudo dela chamado Male Rape and Human Rights [Estupro Masculino e Direitos Humanos, em tradução livre] observa incidentes de violência sexual com homens como uma arma em períodos de guerra ou de agressão política em países como Chile, Grécia, Croácia, Irã, Kuwait, a antiga União Soviética e a antiga Iugoslávia. Vinte e um por cento de homens do Sri Lanka que foram atendidos num centro de tratamento para torturados, em Londres, relataram abuso sexual enquanto estiveram presos. Em El Salvador, 76% dos prisioneiros políticos entrevistados nos anos 1980 descreveram pelo menos um incidente de tortura sexual. Um estudo com 6.000 detentos de um campo de concentração em Saravejo [capital da Bósnia] descobriu que 80% dos homens relataram terem sido estuprados.
Vim a Kampala para ouvir as histórias dos poucos homens corajosos que concordaram em falar comigo: uma rara oportunidade de apurar sobre um controverso e profundo tabu. Em Uganda, sobreviventes correm o risco de serem presos pela polícia, uma vez que estão mais suscetíveis a assumirem [os policiais] que estes homens são gays – um crime em Uganda e em outras 38 das 53 nações africanas. Eles provavelmente serão ostracizados pelos amigos, rejeitados pela família e ignorados pelas Nações Unidas e pela miríade de organizações não governamentais (ONGs) internacionais que estão equipadas, treinadas e prontas para ajudar mulheres. Esses homens estão feridos, isolados e em perigo. Nas palavras de Owiny: “Eles foram desprezados.
Entretanto, eles estão dispostos a falar, em grande parte graças ao diretor britânico do RLP, Dr. Chris Dolan. Dolan ouviu falar pela primeira vez em violência sexual contra homens em períodos de guerra no final dos anos 1990 enquanto pesquisava para sua tese de doutorado no norte de Uganda, e ele percebeu que o problema poderia estar dramaticamente subestimado. Interessado em ter uma compreensão mais ampla da profundidade e natureza do problema, ele colocou alguns cartazes por toda Kampala em junho de 2009 anunciado um “workshop” sobre o assunto numa escola local. No dia marcado, 150 homens apareceram. Numa explosão de sinceridade, um dos homens admitiu: “Isso aconteceu com todos nós aqui.” Logo se tornou de conhecimento dos 200.000 refugiados ugandenses que o RLP estava ajudando homens que haviam sido estuprados durante conflitos. Lentamente, mais vítimas começaram a aparecer.
Encontrei Jean Paul no quente e empoeirado telhado do edifício do RLP em Old Kampala [região da capital]. Ele vestia uma camisa de botões vermelha e mantinha-se segurando o pescoço para baixo, seus olhos fixos no chão, como numa espécie de desculpas por sua impressionante altura. Ele tem o lábio superior mais proeminente que treme de forma contínua – uma condição nervosa que o faz parecer à beira das lágrimas.
Jean Paul estava na universidade no Congo, estudando engenharia eletrônica, quando seu pai – um empresário rico – foi acusado pelo exército de estar ajudando o inimigo e morto a tiros. Jean Paul fugiu em janeiro de 2009, para logo ser raptado por rebeldes. Junto de outros seis homens e seis mulheres, ele foi levado para uma floresta no Parque Nacional Virunga.
Mais tarde naquele dia, os rebeldes e seus prisioneiros encontraram-se com seus comparsas que estavam acampados na mata. Pequenas fogueiras podiam ser vistas aqui e ali entre as sombrias fileiras de árvores. Enquanto as mulheres foram colocadas para fora para preparar comida e café, 12 combatentes armados cercaram os homens. De seu lugar no chão, Jean Paul olhou para cima para ver o comandante inclinando-se entre eles. Com seus 50 anos, era careca, gordo e usava uniforme militar. Vestia uma bandana vermelha ao redor do pescoço e tinha pedaços de arbustos amarrados ao redor dos cotovelos.
Vocês são todos espiões,” disse o comandante. “Vou mostrar a vocês como punimos os espiões.” Ele apontou para Jean Paul. “Tire suas roupas e fique posicionado como um homem muçulmano.
Jean Paul pensou que ele estivesse brincando. Ele balançou a cabeça e disse: “Eu não posso fazer essas coisas.
O comandante chamou um rebelde. Jean Paul podia ver que ele tinha apenas nove anos de idade. Foi dito ao menino, “Bata neste homem e tire as roupas dele.” O garoto atacou Jean Paul com a coronha da arma. Finalmente, Jean Paul implorou: “Ok, ok. Eu tiro minhas roupas.” Uma vez nu, dois rebeldes o seguraram numa posição ajoelhada com sua cabeça empurrada contra o chão.
Naquele momento, Jean Paul interrompeu o relato. A tremedeira em seu lábio superior era mais evidente do que nunca, ele baixou a cabeça um pouco e disse: “Sinto muito pelas coisas que vou dizer agora.” O comandante colocou a mão esquerda na nuca de Jean Paul e usou a mão direita para bater em sua bunda “como num cavalo”. Entoando uma canção de feiticeiro, e com todos assistindo, ele começou. No momento em que ele começou a estuprá-lo, Jean Paul vomitou.
Onze rebeldes aguardavam numa fila e estupraram Jean Paul. Quando ele estava muito exausto para se manter [naquela posição], o próximo agressor envolvia o braço ao redor do quadril de Jean Paul e o levantava pelo estômago. Ele sangrava sem parar: “Muito, muito, muito sangramento,” ele diz, “Eu podia sentir como se fosse água.” Cada um dos homens prisioneiros foi estuprado 11 vezes aquela noite e em todas as noites que se seguiram.
No nono dia, eles estavam procurando por lenha quando Jean Paul viu uma enorme árvore com raízes que formavam uma pequena gruta. Agarrando aquele momento único, ele rastejou para dentro dela e ficou assistindo, trêmulo, aos rebeldes procurando por ele. Depois de cinco horas observando as pegadas dos soldados enquanto eles o procuravam, Jean Paul ouviu o plano deles: eles iriam disparar um rajada de tiros e dizer ao comandante que Jean havia sido morto. Finalmente ele saiu do esconderijo, fraco após seu calvário e pela dieta de apenas duas bananas por dia durante sua captura. Vestido apenas de cueca, ele rastejou pelo matagal “lenta, lenta, lenta, lentamente, como uma cobra” até a cidade.

"As organizações trabalhando com violência sexual não falam sobre isso. Chris Dolan, diretor do Projeto Legal de Refugiados. Foto: Will Storr for the Observer.
Hoje, apesar do tratamento hospitalar, Jean Paul ainda sangra quando caminha. Como muitas vítimas, seus ferimentos são tão graves que ele deveria restringir sua dieta a alimentos leves como bananas, as quais são caras, e Jean Paul pode pagar apenas por milho e painço [tipo de cereal]. Seu irmão seguidamente pergunta o que há de errado com ele. “Não quero contar a ele,” diz Jean Paul. “Temo que ele vá dizer: ‘Agora meu irmão não é um homem.‘”
É por esta razão que tanto agressor quanto vítima entram numa conspiração de silêncio e o motivo por que homens sobreviventes frequentemente descobrem, uma vez que suas histórias são descobertas, que perderam o apoio e o conforto daqueles que os cercam. Nas sociedades patriarcais que existem em muitos países em desenvolvimento, papéis de gênero estão rigidamente definidos.
Na África, a nenhum homem é permitido ser vulnerável,” diz a funcionária do RLP que lida com questões de gênero, Salome Atim. “Você tem que ser masculino, forte. Você nunca deve desmoronar ou chorar. Um homem deve ser um líder e provedor para a família toda. Quando ele falha em alcançar este padrão, a sociedade entende que há algo errado.
Às vezes, afirma ela, esposas que descobrem que seus maridos foram estuprados decidem abandoná-los. “Elas me perguntam: ‘Agora como que vou viver com ele? Como o quê? Isso ainda é um marido? É uma esposa?’ Elas perguntam, ‘Se ele pode ser estuprado, quem está me protegendo?’ Há uma família com a qual estou lidando de perto em que o marido foi estuprado duas vezes. Quando a esposa descobriu, ela foi para casa, embrulhou suas coisas, pegou as crianças e foi embora. Claro que aquilo destruiu com os sentimentos daquele homem.
De volta ao prédio do RLP, fico sabendo sobre as outras formas de sofrimento infligidas àqueles homens. Eles não são apenas estuprados, são forçados a penetrar buracos em bananeiras em que corre seiva ácida, a sentar com seus genitais numa fogueira, a arrastar pedras amarradas a seus pênis, a fazer sexo oral a filas de soldados, à penetração com chaves de fenda e pedaços de pau. Atim já viu tantos sobreviventes que, com frequência, ela pode apontá-los no momento em que se sentam. “Eles tendem a se inclinar para a frente e geralmente vão sentar sobre uma das nádegas,” ela me relata. “Quando tossem, eles seguram suas partes inferiores. Algumas vezes, haverá sangue na cadeira quando eles se levantarem. E com frequência eles têm um odor característico.
Porque há tão pouca pesquisa sobre estupro masculino em períodos de guerra, não é possível afirmar com alguma certeza por que isso ocorre ou mesmo quão frequente é – ainda que uma rara pesquisa de 2010, publicada no Journal of American Medical Association, tenha encontrado que 22% dos homens e 30% das mulheres no leste do Congo relataram violência sexual decorrente de conflitos. Conforme afirma Atim: “Nosso pessoal está sobrecarregado com os casos que temos, mas em termos de números reais? Esta é a ponta do iceberg.
Mais tarde conversei com a Dr. Angella Ntinda, que lida com encaminhamentos do RLP. Ela me diz: “Oito de dez pacientes do RLP vão falar sobre algum tipo de abuso sexual.
Oito em cada dez homens?“, esclareço.
Não. Homens e mulheres,” ela diz.
E quanto aos homens?
Creio que todos eles.
Eu estou horrorizada.
“Todos eles?” eu pergunto.
Sim,” ela afirma. “Todos eles.
A pesquisa de Lara Stemple na Universidade da Califórnia não mostra apenas que a violência sexual contra homens é um componente das guerras pelo mundo todo, ela também sugere que as organizações humanitárias internacionais estão falhando com vítimas do sexo masculino. O estudo dela cita uma revisão de 4.076 ONGs que lidaram com violência sexual em períodos de guerra. Apenas 3% delas mencionaram as experiências dos homens em sua literatura. “Tipicamente,” Stemple afirma, “com uma passagem curta de referência.

Foi dito a um homem: 'Temos um programa para mulheres vulneráveis, mas não para homens': uma vítima de estupro do Congo. Foto: Will Storr for the Observer.
Na minha última noite, fui à casa de Chris Dolan. Estávamos no topo de uma montanha, vendo o sol se pôr nas redondezas de Salama Road e Luwafu, com o lago Victoria ao longe. À medida que o céu foi passando do azul para o lilás e para o preto, uma miríade confusa de luzes brancas, verdes e laranjas cintilavam; pontinhos de luz de um acidente distante no vale apareciam. Um burburinho magnífico vinha disso tudo. Bebês chorando, crianças jogando, cigarras, galinhas, pássaros, vacas, televisores e, sobressaindo-se sobre tudo isso, um chamado para orar numa mesquita distante.
As descobertas de Stemple sobre o fracasso das agências humanitárias não é surpresa para Dolan. “As organizações trabalhando com violência sexual e de gênero não falam sobre isso“, ele afirma. “É sistematicamente silenciado. Se você for muito, muito sortudo eles darão a isso uma menção tangencial no final do relatório. Você deve conseguir cinco segundos de: ‘Ah, e homens também podem ser vítimas de violência sexual.’ Mas não há quaisquer dados, nenhuma discussão.
Como parte de um esforço em corrigir isso, o RLP produziu um documentário, em 2010, chamado Gender Against Men [O Gênero Contra os Homens, em tradução livre]. Quando ele foi exibido, Dolan disse que tentativas de impedi-lo foram feitas. “Essas tentativas foram feitas por pessoas bem conhecidas, agências humanitárias internacionais?” eu questiono.
Sim,” ele responde. “Há um temor entre eles de que este é um jogo de soma-zero; de que há um bolo pré-definido e se você começar a falar sobre homens, você irá de algum modo comer um naco deste bolo que eles levaram bastante tempo para assar.” Dolan comenta sobre um relatório de 2006 das Nações Unidas que se seguiu a uma conferência internacional sobre violência sexual nesta área do leste africano.
Eu sei de fato que as pessoas por trás do relatório insistiram para que a definição de estupro fosse restrita a mulheres,” ele afirma, completando que um dos doadores do RLP, Dutch Oxfam, recusou-se a fornecer qualquer outra doação a menos que ele [Dolan] prometesse que 70% dos clientes fossem mulheres. Ele também se recorda de homem cujo caso era “particularmente grave” e que foi designado para a agência de refugiados da ONU, a UNHCR. “Eles o disseram: ‘Nós temos um programa para mulheres vulneráveis, mas não para homens.’
Isso me lembra de uma cena descrita por Eunice Owiny: “Há um casal“, ela conta, “O homem foi estuprado, a mulher foi estuprada. A divulgação é fácil para a mulher. Ela recebe o tratamento médico, ganha atenção, é apoiada por diversas organizações. Mas o homem está isolado, morrendo.
Em resumo, é exatamente isso que ocorre,” Dolan confirma. “Parte do ativismo em torno dos direitos das mulheres é: ‘Vamos provar que mulheres são tão boas quanto os homens.’ Mas o outro lado disso é que você deveria olhar para o fato de que homens podem ser fracos e vulneráveis.
Margot Wallström, a representante especial para violência sexual em conflitos do Secretário-Geral da ONU, insiste em uma declaração que a UNHCR estende seus serviços para refugiados de ambos os gêneros. Mas ela reconhece que o “grande estigma” que homens enfrentam indica que o número real de sobreviventes é maior do que o reportado. Wallström diz que o foco permanece nas mulheres porque elas são “a esmagadora maioria” das vítimas. Ainda assim, ela complementa, “nós de fato sabemos de muitos casos de homens e meninos sendo estuprados.
Mas quando contato Stemple por e-mail, ela relata “uma constante tecla batida em que mulheres são as vítimas de estupro e um ambiente em que homens são tratados como uma “classe agressora monolítica”.”
Leis internacionais de direitos humanos deixam os homens de lado em praticamente todos os instrumentos elaborados para tratar de violência sexual“, ela prossegue. “A Resolução 1.325 do Conselho de Segurança da ONU, em 2000, trata violência sexual em tempos de guerra como algo que impacta apenas mulheres e meninas… A Secretária de Estado Hillary Clinton recentemente anunciou 44 milhões de dólares para implementar esta resolução. Por causa de seu foco inteiramente em vítimas mulheres, parece improvável que qualquer parte destes fundos vá atingir os milhares de homens e meninos que sofrem deste tipo de abuso. Ignorar o estupro masculino não só negligencia os homens, também fere as mulheres ao reforçar um ponto de vista que iguala ‘mulher’ com ‘vítima’, assim dificultando nossa capacidade de ver mulheres como fortes e empoderadas. Num mesmo sentido, o silêncio sobre vítimas homens reforça expectativas deletérias sobre homens e sua suposta invulnerabilidade.”
Considerando-se  a conclusão de Dolan de que “o estupro de mulheres é significativamente sub-reportado e que o de homens quase nunca é reportado“, eu pergunto a Stemple se, baseando-se em sua pesquisa, ela acredita que isso seja uma parte até agora inimaginável de todas as guerras. “Ninguém sabe, mas eu realmente acho que é seguro dizer que é provável que isso tenha sido parte de muitas guerras ao longo da história e o tabu tenha desempenhado uma parte neste silêncio.
Enquanto deixo Uganda, há um detalhe de uma história que não consigo esquecer. Antes de receber ajuda do RLP, um homem foi ver seu médico local. Ele contou ao médico que foi estuprado quatro vezes, que estava ferido e depressivo e que sua mulher havia ameaçado deixá-lo. O médico deu a ele Paracetamol.
Os nomes dos sobreviventes foram modificados e suas identidades ocultados para a proteção deles. O Projeto Legal de Refugiados (RLP) é uma organização parceira da Christian Aid (christianaid.org.uk)





quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Piropeemos

Muitooo se tem falado e mais ainda digitado sobre o piropo, mas era inicialmente uma questiúncula tão mas tão ridícula, que roçou o meu descaso e foi embora.
Hoje, apetece-me piropear o piropo.
Como este quesito começou já na rentrée do BE, eu achei que Adriana Lopera e Elsa Almeida cometeram o lapso de debitar o discurso anterior da tola silly season, mas claramente foi um equívoco meu não as ter entendido.
A minha cisma é que persisto sem atingir o desassossego que as consome.
As duas senhoras dizem entre outros mimos - e podem lê-lo na integra aqui: "O assédio só pode estar enquadrado na área na violência contra as mulheres, portanto da violência de género ou a violência machista, e será analisado como mais uma demonstração da relação de poder que a sociedade patriarcal estabelece".
Ora então vejamos: Se a finura for: "faço-te uma carica num olho, ó besta!" não é um crime de género, não, e é um primor de somenos importância, o desrespeito, é. Mas se for "Ó boooooa, anda cá ao pai", já é um crime analisado como mais uma demonstração da relação de poder que a sociedade patriarcal estabelece? Pois, continuo sem conseguir alcançar...
Tudo o que roce a proibição, dá-me urticária mental. É um facto incontornável na minha vida, e por princípio, sou logo 'do contra'. É que ainda sou do tempo de me lembrar de, na minha família, haver um hábito estranho para a minha cabeça infantil: abrirem a porta da rua, espreitarem se alguém estaria a escutar e só depois se sentarem para conversar baixinho. Não havia activistas no seio familiar, mas o medo instituído de uma possibilidade pidesca que só mais tarde entendi, faz-me ainda hoje respeitar por si só o conceito de liberdade.
Eu até compreendo que a malta esteja cansada da crise, e bate-se nos piropos com uma veemência, como se não houvesse amanhã, nem mais nenhum tema importante para resolver no país, mas convenhamos, um piropo é apenas isso: um piropo.
s. m. [Popular] Galanteio; elogio; frase amável ou lisonjeira dirigida a alguém.

"Mulher honrada não tem ouvidos", crescemos a ouvir isso, ou "não se responde a um pssst" e ainda que tenhamos uma educação judaico-cristã, com um vínculo muito estreito com a culpabilização, a meu ver, a assimilação de conceitos e preconceitos sobre a relação com próprio corpo, a sexualidade e a feminilidade, são diferentes em cada fase da vida de uma mulher.
Eu nasci e cresci no Bairro de Alvalade, que é paredes meias com Hospital Júlio de Matos. Na época da minha adolescência, convivia-se diariamente com os pacientes psiquiátricos internados que passeavam livremente pelas avenidas. Recordo que havia o senhor da gabardine que a abria despudoradamente, a ternurenta condessa desgrenhada  que embalava um bebé-chorão, entre outros que até tinha uma maior paciência e havia os de que fugia devido aos meus atributos físicos constituírem uma séria ameaça.  Se era incómodo para uma  jovem adolescente? Certamente (e sei que a minha irmã se irá rir no preciso momento que ler este texto porque recordará uma historieta).
Eu fui uma menina que cresci com um peito grande. Se fui alvo de piropanços? Com certeza. Mas se em pré-adolescente me assustei (até porque ainda era maria rapaz), mais crescida, bem mais crescida, já liberta de culpas bacocas-religiosas, aprendi que um silencioso olhar podia ser mais dotado de más intenções que um piropo. Para ambos aprendi a defender-me ou com um olhar 33 ou com o meu comedimento na audição. Se ligo? Não, às vezes sorrio da piadola bem engendrada, mas não respondo, nem ligo aos narizes que quase caem no decote, nem olho (ainda) se fizerem pssst.
A relação com a sua feminilidade, não é na rua com o piropo do trolha, que a mulher aprende a lidar com os pseudo-traumas de que se tanto vê por aí escrito, é em casa, na educação que se dá a cada um dos nossos filhos ou filhas. O respeito aprende-se, é bonito e toda a malta gosta.
Gostaria de saber se uma colega minha de liceu se lembrará de uma ociosa tarde que resolvemos fazer um teste e piropear moços jeitosos, encostadas nas arcadas da pastelaria Vá-Vá como bons trolhas na hora de folga. As reacções foram as previsíveis - a incredulidade.
Não voltámos a fazê-lo, era apenas um teste. Mas se na adolescência aprendi que também as mulheres podem piropear e contudo não o fazem porque assim foram educadas, se calhar a resposta está na educação dos moçoilos. Mães que continuam a achar que os meninos não brincam com vassouras, não precisam saber cozinhar ou lavar a loiça... pensem melhor.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Linda, a personagem autista

Finalmente vamos ter uma personagem autista numa novela em prime time. Há quantos anos eu clamo por isto??? 


A actriz Bruna Linzmeyer de 20 anos dá vida a uma personagem na novela "Amor à Vida" que agora se estreia em Portugal na SIC. Linda, a personagem, é autista e a actriz tem sido acarinhada pelo público pela entrega e dedicação no compor desta complexa personagem.
Pessoalmente, peço pela personagem em novela há anos, por ser o formato que terá visibilidade no nosso país (tendo em conta a enxurrada que passa ao longo de todo o serão televisivo). As pessoas consomem, absorvem e aprendem e, a meu ver, Portugal precisa ser 'educado' a observar, a reconhecer, pelos gestos, postura, olhar, uma criança errática, um jovem adolescente descompensado, um adulto estranho. Poderia continuar a adjectivar em contra-corrente. Mas são pessoas tímidas, desbragadas, ausentes, hiperactivas...? não. É apenas autismo. E porque é tão difícil explicar, de conseguir entendê-los? Porque não há dois iguais. Uma personagem numa novela que entra pela casa adentro sem pedir permissão, vai ajudar nesse entendimento, nos porquês, nas suas frustrações e fascinações.
“Existe preconceito por desconhecimento. Falar sobre autismo e sobre as pessoas que conheci é dar voz a elas. Estou muito envolvida, muito sensibilizada”, conta Bruna Linzmeyer.
Estou expectante com este desempenho. Com a abertura que a Linda pode trazer à nossa comunidade, de pessoas portadoras, suas famílias e cuidadores, por parte de quem os julga num infeliz olhar de esguelha, tantas vezes injustiçoso para com os evolvidos.

"Eu encaro a Linda com o coração aberto e batendo muito forte. Ela é minha vida nesse momento. Ela faz parte de mim. É uma responsabilidade muito grande", diz Bruna Linzmeyer. 


Vamos esperar pela Linda, a personagem autista. 





terça-feira, 3 de setembro de 2013

Já não se pode ser feia



Será até um dos muitos mitos urbanos de tanto que se enfatiza a importância que se atribui à beleza interior. "Ahhh, fulana é linda por dentro e por fora", ou "não interessa a aparência de cicrano, mas sim o interior, aí sim se encontra o verdadeiro encanto". A mim, confesso, dá-me uma instantânea vontade de rir, quando aquele filme paralelo que tem acompanhado a minha vida, aquele que - qual vida de Brian - segue direitinho o meu raciocínio normal a cada situação, mas em versão cómico-apalermada: Beleza interior? Ah sim, deve ser uma beleza o cheirinho do estômago, e o burbulhar acre dos sucos então devem ter cá um encanto... e os intestinos? Bom, nem me adianto no caminho fácil e previsível de pensar na piadola escatológica... 
A beleza existe. Em todo o lado que se olhe. Basta ver o ângulo certo de cada objecto, ser ou momento. Devia ser obrigatório activar a tecla do sentido estético à nascença, mas aí, já nem faria sentido nada do que estou a escrever. 

É o cliché Síndrome da Beleza Exterior/Interior, ou até - o do meu filme cómico - que poderia chamar naturalmente de Síndrome Bota da Tropa/Bebé Beatle... (ok, ok, eu explico). 

Quando nasci, contam que vinha com uma guedelha que teve de ser cortada (penso que terá mesmo sido com a tesoura do umbigo), porque a minha proverbial franja era então uma melena que me dava pelo queixo. Ora sendo o ano de '63, logo as enfermeiras me deram a original alcunha de Bebé Beatle.
Lembro da minha avó contar que, olhando o berçário, outra avó lhe perguntou qual seria o neto, a que graciosamente a minha avó respondeu tufando o peito, a menina mais bonita, a que tem cabelo.
Ora se nasci gira e era gira na escola ou no local onde a família passava férias, em abono da verdade isso constituía um facto que vivia comigo a que, com toda a sinceridade, cresci sem nunca ligar.
Cresci meio maria-rapaz muito mais preocupada no prazer de andar de bicicleta, subir às árvores sempre na chinchada ou bater nos rapazes para defender a minha irmã.
Quando algum moço mais afoito pensou em derriço para o meu lado, e soltou a frase: Ah és tão gira, respondi-lhe secamente: E...? 
Hoje, cá do alto dos meus quase 50 anos, sei que se tivesse nascido feia-feinha como uma bota da tropa, teria certamente ligado e muito a esse simples facto. Muito provavelmente ter-me-ia resguardado na grande personalidade e na imensa beleza interior que certamente (definitivamente!) teria em minha defesa. 
E agora pergunto: e porque é que uma bota da tropa tem de ser feia?, e o que é que vem à lembrança? (lá está ela...) Recordei esta foto que há dias visualizei numa rede social, dessas que todos usamos e por ter achado uma ideia bem gira.
É a forma como olhamos o que nos envolve: Tudo, mas tudo tem o seu encanto. E olhando pelo cantinho certo, pelo ângulo que mais ninguém se incomodou de vislumbrar, descobrimos que nem uma bota da tropa consegue ser feia. 



segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Setembro

autoria de Yohane Sanfer
«Não sei se viro 
 menina, se viro mãe, 
se viro todas.  
 Se viro artista, 
 se viro vento 
 ou viajante 
 viro santa 
 ou viro doida 
Quem sabe viro onça, 
viro a mesa, 
 viro a página, 
 viro a vida do avesso 
 e viro outras 
 Sim, 
 eu me viro.» 

Recomeço, tomando as arrebatadoras palavras de Yohane Sanfer, uma jovem escritora que está agora por estes dias a lançar – da boca pra dentro – o seu primeiro livro, para, de caminho, aproveitar para lhe desejar S-O-R-T-E, que não esqueçam o seu nome, e que a leiam, esta miúda escreve pra caraças!


Recomeço agradecendo, é Setembro, tempo de virar a página, de respirar, de prosseguir, de viver. A todos quantos, de uma forma ou de outra, nos deram a mão, e foram muitas as mãos dadas em nosso redor, estou-vos muito grata! 



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