domingo, 14 de fevereiro de 2021

A primeira vez

Hoje é o aniversário deste site. 
Nasceu de uma brincadeira tola no Twitter, em 2009, quando perguntei “Onde posso publicar um texto para lerem?” uma voz disse: 

“Faz um Blog!”

Se eu não queria escrever num Blog, ter um Blog menos ainda! 
Encantei-me com o contacto directo que obtive com os meus leitores! 
Já não é apenas Blog, cresceu a Site – dou a cara e o nome. 
Assim mesmo, de ganga vestido. 
Porquê dia 14 de Fevereiro? 
Não deixa de ser irónico, festejar o aniversário deste meu espaço logo numa data que não tenho grande respeito (porque, a meu ver, namorar, namora-se todos os dias) o blog nasceu com este conto 
veio posteriormente a ser publicado no livro MAL ME QUERO

Hoje ofereço este conto de novo aos meus leitores 


Irene já se tinha esquecido: há muito tempo prometera a si própria que nunca mais sairia à noite num dia de namorados. Mas aconteceu. Com amigas, alheadas da comemoração, na sua nova “solteirice”, combinaram ir todas ao Japonês.
Ao entrarem no restaurante habitual depararam-se com um invulgar burburinho – infernal!, nem conseguiam avistar o dono! Todas as mesas estavam preenchidas apenas com casalinhos, até ao redor da zona Teppan-yaki – coisa que pretendiam – estava ocupada por parzinhos, claro!, restaurante da moda e caíam lá todos que nem tordos na noite de saída!
“Socorro! Saímos no Dia-Oficial-do-Manel-levar-a-Maria-à-rua!!!!” – Brincou. Alguém sugeriu mudar de restaurante, mas não adiantaria àquela hora, sem marcação, estariam todos a transbordar de Manéis&Marias.
Antes, imagina-os:
Olhou à volta. Irene não tinha nada a opor ao amor ou a sua celebração, apenas o que chamava de “Dia Oficial”, uma representação patética do que deveria ser, por definição, celebrado todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.
O Manel pespega uma beijoca à sua Maria logo pela manhã antes de sair para o trabalho – ela falou tanto nisso na véspera, entre o intervalo do futebol e o creme de noite que ele teve pesadelos do mês sem sexo que sabia, ela imporia, se ele ousasse esquecer…
A Maria, nesse dia sorri feliz, usa roupa nova, vai ao cabeleireiro – muita laca, muito caracol – compra um postal cor-de-rosa já preenchido, tipo-basta-assinar e uma prendinha bem fofinha para o seu Manel pôr no carro – coisa que ele jamais usará ao lado do galhardete do seu clube do coração…
O Manel, mais pragmático, compra o que ela discretamente lhe pediu durante a última semana toda, incluindo, a seguir à beijoca matinal sem sumo.
A Maria papagueia com as suas colegas de trabalho onde poderá ser levada mais logo a jantar. Todas graciosamente fazem crer umas às outras que não sabem o local e/ou a prenda.
O Manel, à tardinha, entre bejecas e tremoços, ri com os amigos que, este dia dos paleios cor-de-rosa, até foi uma coisa bem inventada: é uma noite que seguramente elas não irão passar a ferro até tarde, lhes doerá a cabeça ou terão o período…
A Maria já passou em casa da Mãe, depositando os filhos com um bem disposto: “Até amanhã!”
O Manel foi à florista.
A Maria chegou a casa mais cedo, tomou uma chuveirada e rapou os pêlos.
O Manel passou horas na fila da florista, rosnando.
A Maria passa o gloss mais uma vez pelos lábios ainda bonitos e com pouca procura.
O Manel chega a casa com um previsível ramo de rosas vermelhas, reclama por lhe ter custado 50 euros e, claro, «a» prenda.
Ouve-se na casa do Manel e da Maria uma palavra inusitada: Amo-te
Saem para a rua. Está tanto trânsito como de dia. Vão a um restaurante com folhas de papel branco por toalha.
O Manel pensa: “A TV desligada, que má sorte a minha, espero que alguém repare… se digo alguma coisa, lá se vai a queca.”
A Maria suspira: “Ele vestiu a camisa mais velha, logo hoje… qualquer dia rasgo-a e faço panos para os vidros.”
Irene respirou fundo e olhou em volta enquanto ainda esperavam mesa. Sentiu um ambiente dengoso nas mesas. Não se distinguia a música do ruído. Contrastava a elegância dos pratos deste espaço usualmente relaxante, seguro pela perplexidade serena dos empregados com o frenesim de tão inusitados clientes que até pediam, imagine-se… karaoke.
Irene lembrou-se daquela outra noite, não há tantos anos em que ficara inoculada da noite dos namorados. Presa num extraordinário trânsito para aquela hora tardia, olhou à sua volta: Estupefacta, viu o Manel ao volante com a Maria ao lado em todos os carros! Havia a versão casados-há-muitos-anos visivelmente enfadados pela demora e os namoradinhos que ainda disfarçam hostilidades cortesmente. Olhara para o João, o seu marido, para o seu olhar vazio esperando que o trânsito fluísse. Sentiu um arrepio: era apenas mais um Manel, o que, lamentavelmente, fazia dela mais uma Maria.
Decidida a que o Manel e a Maria não lhe estragariam mais nenhuma noite, olhou de novo à volta, desta vez com a sua firmeza acutilante.
O frete.
Estavam todos a fazer frete! Tinham saído à rua somente porque tinham de fazê-lo!… Todos sorriam complacentemente enquanto gramavam polidamente a estopada.
Todos não.
De indicador em riste anunciou, peremptoriamente, às suas amigas cansadas de estar em pé:
“O único casal a sério nesta sala, é aquele ali do canto.”
“Como sabes?” Perguntara a Bárbara.
“Sei. Sinto. São os únicos que estão a conversar.” Argumentou encolhendo os ombros.
Contrapuseram, estando num restaurante repleto de sons estridentes, com outros pares que tagarelavam demasiado alto.
“Estão apenas a falar. Reparem no olhar, estão apenas a falar, não estão a conversar.”
“Na mesa mesmo atrás de nós estão os piores espécimes de Manéis&Marias – sussurrou rindo a Maria Clara enquanto se sentavam – os broncos!
Olhavam causticamente para trás. Versão cromanhon-namoradinhos, diziam à socapa. Tinham de estar dois pares
à mesa! Claro!… aos pares, se não, com quem é que eles haveriam de conversar???
Sem estranheza, Irene ouviu um dos rapazes protestar bem alto, com os pauzinhos em riste, pedindo talheres de gente, o outro palerma reclamar do peixe estar mal passado, uma das Marias dizer que o gengibre eram «pétalas de flores comestíveis», que «tinha lido numa revista» até ao momento hilário em que um comeu de uma só vez o “pistachio”, urrou que nem um urso que o tinham enganado… sem mencionar a boa parte da noite a ouvi-los contar anedotas pouco edificantes sobre mulheres… que apropriado! – pensou – mas o melhor ainda estava para vir. Quando entrou uma figura típica da noite, empunhando a habitual braçada de rosas, uma daquelas Marias deu uma valente murraça na mesa afiançando ferozmente:
“Eu hoje vou querer uma rosa!!!”
Até os outros Manéis&Marias das demais mesas tiveram dificuldade de suster o riso… Resta acrescentar o que já todos sabíamos, se calhar, até ela: não a teve.
A pouco e pouco todos os Maneis e Marias foram saindo. Era noite de festa lá em casa ou no banco traseiro do carro! Há casais que são abusivos durante todo o ano, seja verbal, física ou psicologicamente, mas Deus os livre de não festejarem o dia dos namorados!
Ficaram embrenhadas na conversa boa e no último sake gelado, depois do ritual de sabores nipónicos numa refeição memorável onde, como manda a tradição, nem um único bago de arroz foi desperdiçado, quando o tema de início de conversa, voltou à baila: As únicas mesas ainda ocupadas, agora sim, naquele tranquilo e prazenteiro restaurante, eram apenas a das amigas e a do tal casal do canto.
Ficaram a reparar e comentar ostensivamente nos detalhes sem que nunca sequer dessem conta. Era a mulher que estava virada na direcção delas. Tal como as amigas, não tinha estreado roupa nova, não tinha ido ao cabeleireiro, não havia nenhuma rosa vermelha do ké-frô na mesa.
Era particularmente bonita, como só uma mulher segura de si consegue pôr um lápis a segurar-lhe o cabelo, vestir uma qualquer t-shirt branca com jeans e… estar bem.
Irene entretanto contava uma situação que ouvira num supermercado na véspera. Estava no corredor dos desodorizantes quando tomou atenção numa frase: “Olha, não tenho ideia nenhuma, pode ser já isto? Ficava já despachada para amanhã.” Irene sorrira ao se aperceber que falavam da prenda para o Dia Oficial. Que romantismo!, claramente uma Maria! Continuando as suas compras, ficou com atenção ao diálogo: “…ou então, pode ser este perfume…?, é que nem sequer é caro!”
O grito masculino ecoou pelos corredores:
“N-Ã-Ã-Ã-O!!!!”
As pessoas, às compras, entreolharam-se, mas ninguém se pronunciou quando a discussão estalou. Num casamento, quem vai meter a colher? Irene também olhou por cima do ombro. Pensou que fossem mais velhos, mas era um casal muito novo, reconheceu a vergonha só no tremor do queixo daquela rapariga que continuava a dizer tontices com ar subserviente enquanto ele lhe virava as costas e a deixava a falar para as prateleiras.
Respeito. A ligeira diferenciação entre um casal e um Manel&Maria.
Quando saíram do restaurante, o casal da mesa do canto continuava a conversar. Nunca deram pelas outras pessoas que tanto os observaram.
Irene deu um último relance ao casal antes de sair.
Apeteceu-lhe, por um momento, que soubessem que eram o seu prémio casal da noite, afinal fizeram-na acreditar que não eram apenas os Manéis e as Marias que saltavam para fora de casa nesta noite… mas, sempre soube que casais como este, não celebra o seu Amor apenas porque algum grupo de comerciantes resolveu importar uma moda que nem é nossa para aumentar um pouco mais as vendas – criaram portanto este pomposo evento a comemorar – leia-se a comprar.
Sorriu ao casal da mesa do canto e pensou, apesar de ter escolhido o divórcio para si, viver a dois, vale realmente a pena – quando vale a pena, respirou fundo e imaginou todos os casais que sabem: alimentar o amor é uma tarefa diária, construtiva, constante… todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.
Podia estar sozinha nessa noite, poderia continuar sozinha na vida, mas Irene sorriu. Enquanto esperavam para pagar, abriu o seu Moleskine e escreveu: 

“Há, é uma forma diferente de ver e viver a vida, o que nos torna loucos aos olhos dos que levam uma vidinha triste e sem sabor. A nossa, sabe a morangos com chocolate, até, quem sabe, sake e wasabi, se e quando deixamos a parte picante entrar na nossa vida.”


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