quarta-feira, 25 de abril de 2018

Onde é que você estava no 25 de Abril?

Hoje, e porque celebramos o dia 25 de Abril de 1974 e a liberdade que nos trouxe à nossa vida, apetece-me partilhar o início do meu novo livro, chamemos-lhe capítulo zero ou prólogo, porque descrevo justamente este dia e de como uma menina do liceu chamada Alice o percepcionou. 
No dia 23 de Abril, dia do livro, deixei que os leitores espreitassem pelo buraco da fechadura, e lessem algumas palavras do começo do meu novo livro, e hoje, porque tenho a liberdade como autora de mostrar mais do que seria suposto ou politicamente aceitável ou até correcto, faço-o, apenas porque me apetece e celebrando a liberdade de o poder fazer.


Também porque ao descrever as emoções, sensações e pensamentos de uma menina do liceu, abro uma janela às novas gerações que nem conhecem a carismática pergunta de Baptista Bastos, criada numa personagem de Herman José que o retratava, no programa de humor em 1997, o Herman Enciclopédia:
Onde é que você estava no 25 de Abril?


 Esta pergunta de Baptista Bastos (a personagem de Herman José) teve tanto impacto que o escritor, na vida real, acabou por fazer uma série de entrevistas em que colocava esta questão aos seus convidados. E a frase ficou. Hoje os jovens conhecem-na, mas não sabem esta origem. Tão pouco a perguntam, porque a resposta seria: "se nem era nascido..."

Apeteceu-me começar este novo livro, respondendo a essa questão: onde Alice estava no 25 de Abril de 1974?

Pelo novo livro e sua história, os meus queridos leitores terão de esperar o seu momento.
Até breve!


Prólogo
A Malta do Liceu

Alice tinha quase 19 anos quando se deu o 25 de Abril de 1974 e lembrava-se perfeitamente do local onde se encontrava, o que estava a fazer.
Naquela madrugada o telefone ressoou pela casa adormecida. Alice prontamente saltou da sua cama e correu para a saleta, rumo ao aparelho destemperado atendendo a chamada telefónica, estranhando em primeiro lugar a hora matutina e depois o tom sombrio, quase enigmático, com que o pai, uma vez chamado, respondia ao amigo do outro lado do fio.
Nem as meninas foram à escola - a mãe conduziu-as para os seus bordados - nem o pai saiu para o emprego. Ficaram recolhidos naquela manhã a ouvir baixinho na telefonia o que só mais tarde entenderia como o fim de uma era. Os quatro em silêncio, apenas quebrado quando a sua irmã se picou ou com o continuado calcar dos dentes paternos na ebonite da boquilha do seu cachimbo mordiscado.
Recordava-se de outra curta ligação telefónica, do pai num breve movimento a fazer-lhe sinal que se levantasse e fosse ligar de imediato o aparelho de televisão, de esperarem, a contarem os segundos no relógio Omega que o ecrã do televisor mostrava até aparecer a imagem do Fernando Balsinha, muito compenetrado do seu papel de anunciar aos espectadores do seu país que, naquela tarde e a partir daquele momento, a rede emissora da Rádio Televisão Portuguesa estava totalmente controlada pelo Movimento das Forças Armadas.
Outra chamada telefónica, de um tio a perguntar como estavam com a situação em Lisboa, se estavam todos a salvo, que soube quando os cachopos foram ter com ele ao trabalho e o alertaram, estavam normalmente na telescola e mandaram-nos para casa, visto que a emissão fora tomada.
Alice não se recorda muito bem do que o Fialho Gouveia leu na emissão especial do telejornal, não entendeu porque proclamavam à nação o propósito de salvação do país, ainda menos entendeu a necessidade de o libertar de um regime que há longos anos o oprimia. Oprimia? Regime? Na verdade, Alice distraída do seu bordado, fixou-se no diálogo que estranhou aos seus pais: a mãe a ordenar que as meninas se recolhessem de imediato ao quarto, ainda no relógio Omega passavam os segundos na imagem do televisor, e o pai a sobrepor a sua posição, afirmando que deveriam ficar na sala. Alice não entendeu a mudança repentina: iam permitir-se ter conversas de adultos frente às duas filhas? Nunca o haviam feito! Ficaram, mas desabituadas de tanta circunstância a que foram a vida inteira protegidas, entreolhavam-se, não compreendiam o que eram os acontecimentos revolucionários que os dois locutores liam uma e outra vez. Alice lembrava-se de reparar que estariam algo nervosos, enquanto Fernando Balsinha lia as notícias, Fialho Gouveia fumava ininterruptamente.
No final, Alice recordava-se, para além da Sinfonia nº 3 de Beethoven, que reteve daquelas horas iniciais um nervosismo desconhecido, tanto em casa observando os pais como percepcionando-o nos locutores, e de que esse estado de espírito ter ido dando lugar a uma felicidade que não teve capacidade de assimilar qual a sua origem mas que com facilidade se deixou contagiar.
Recordava a estranheza que sentiu quando o pai, contrariando o aviso que os locutores repetiam, saiu para a rua, admirou-se que a senhora sua mãe cantarolasse “E depois do Adeus” do Paulo de Carvalho, cantor pelo qual em casa não nutriam particular simpatia, que o Fialho Gouveia largasse o cigarro e a cada actualização que lhe entregavam, lesse com maior enfâse, até ao empolgamento final com que agradeceu a fineza de trato que o movimento cuidou ter para com todos, desde o primeiro momento que ocupou a estação televisiva.
Recordava-se exactamente da cor que trabalhava no bordado que fazia naquele dia 25 de Abril, mais pela peculiaridade do dia do que pelo seu significado já que a sua ingenuidade não a deixava entender.

Da candura e estranheza, a deixar-se mergulhar na nova época que esse dia anunciou, foi uma mudança demasiado rápida e fácil: ninguém a preparou para a abrupta passagem da rigidez na educação paterna e absolutas regras escolares darem lugar a uma quase vulgaridade de normas valores e costumes que, dançando e cantando, de braço no ar revolucionando o que nem compreendia, embarcou.
Alice, mais afoita que a comedida irmã, queria experimentar, tomar o pulso a tudo, receosa que a liberdade tivesse chegado com breve prazo de validade e tivesse de voltar ao recato do seu bordado.
No liceu havia muitas reuniões gerais de alunos, as R.G.A., que foram ganhando notoriedade entre a população estudantil, foi havendo mais movimentações politizadas e consequentemente quebras na rotina, muitos momentos sem aulas e essa ociosidade foi uma das novidades que mais a atraía. Reuniam-se na pastelaria à frente do liceu, amiúde começou a beber café e, mais por osmose que por convicção, também a fumar como os colegas. Daí foi alargando as saídas do liceu em horário escolar que cada vez era mais caótico, primeiro para os passeios em grupo pela avenida da Igreja, com as obrigatórias idas aos gelados Itália, depois para o jardim do Campo Grande andarem de barco a remos com os irmãos das colegas, também desocupados, e nos dias quentes todos juntos em grandes grupos para as praias da linha do Estoril, faltando deliberadamente às aulas seguintes.
As saídas nocturas surgiram naturalmente com a nova vaga educacional que os pais queriam acompanhar: permitiam-nas desde que as duas filhas fossem juntas. Embora a irmã preferisse ambientes mais reservados, acompanhava Alice levando consigo um livro e distanciava-se das escolhas cada vez mais audazes que via a irmã fazer. Rapazes, drogas, álcool.
Um final de tarde na Marginal teve um desfecho inesperado.
Vinham de mais um ensolarado dia de praia daquele Verão quente.
A irmã viu Alice, que ia à pendura na Zundapp amarela à frente do Mehari onde seguia, ser projectada após um embate palerma com um DS. O rapaz que ia ao volante já havia comentado que o colega não deveria estar a conduzir depois do que tinha consumido, ainda para mais de duas rodas. Quem é que não vê um boca de sapo aproximar? Aconteceu. Pararam, socorreram, esperaram a ambulância, seguiram até ao hospital, esperaram. Alice pediu à irmã segredo, nada contarem aos pais.
O que Alice não esperava era que o segredo fosse maior que ela.
Nem à irmã contou.
Uma médica abeirou-se inquirindo:
- Quem a está a acompanhar?
- A minha irmã.
- A senhora deseja que mande chamar o seu marido?
- Marido? Eu sou solteira.
- Compreendo, menina então. Lamento profundamente, mas devo informá-la que perdeu os seus bebés.
- Que bebés? Do que fala?
- A menina não tinha conhecimento do seu estado?
- Que estado, senhora doutora?
- Devo chamar a sua irmã?
- De maneira nenhuma! Explique só a mim, de que fala? Eu estou grávida??
- Estava.
- Gémeos…? Grávida, eu??
- Sim. Dois meninos. Lamento informá-la assim nestas condições.
A médica sentou-se na beirada da cama e segurou-lhe a mão. Alice respirou fundo e levantou o olhar:
- Doutora… não chame a minha irmã, por favor, não diga nada!

Alice saiu do hospital em silêncio. A irmã e os colegas felicitavam-na, que sorte tivera por escapar só com arranhões, o amigo deles tinha a perna partida e o condutor do boca de sapo ficara internado em observação.
Sim, que sorte. 







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