domingo, 27 de outubro de 2013

A Hora do Nada

A violência doméstica continua a ser um crime que toca todas as classes sociais, raças e credos. Escrevi este livro há tantos anos e preparando mais um ano de apresentações e mini-conferências dou-me conta de como infelizmente o tema  continua tão actual. Deixo-vos, hoje na mudança das duas para a uma da manhã, nos sessenta minutos que não existem, o conto A HORA DO NADA. Sempre que acontece esta mudança de hora, em que recuamos uma hora nos nossos relógios e nas nossas vidas, a minha imaginação mais que fértil dispara nas múltiplas possibilidades do que pode ou não acontecer a cada um de nós numa hora que não existe e que de uma forma utópica mude a forma de estar e ser para sempre. É claro que esse momento nos pode surgir em qualquer hora de nossas vidas, mas muito mais poético se for naquela hora mágica que só se designou existir uma vez por ano, poético e definitivamente uma excepcional história para, um dia contar aos seus netos.
Não seria o caso de Sandrine, se fosse o caso desta minha personagem ser real. É uma das muitas caras sem rosto que dão cor ao meu livro «MAL ME QUERO» que sendo um romance de ficção, aborda realidades vividas por muitas Marias e Sandrines. Nem sempre mulheres, nem sempre Marias, e sim, também o reforço no meu livro com personagens masculinas, apesar de o rosto mais visível da vítima da violência doméstica seja o feminino.
Deixo-vos com a Sandrine, quiçá para ser lido na hora do nada deste ano, acompanhado pelo som de Zero 7 - um dos contos do meu livro «MAL ME QUERO» - A hora do nada.

Zero 7 - Distractions

A Hora do Nada 
por Ana Martins

Sandrine convenceu-se que não tinha acontecido. Até porque fora só daquela vez e aquela vez não tinha existido.
Engraçado os mecanismos que a nossa cabeça arranja para se defender do lixo mental que não queremos ver, ouvir, cheirar, sentir, menos ainda saborear.
O Ruben tinha aquele hábito horrível de beber bagaço com a bica do jantar. O pai dela também o fazia, quando imigraram para França, dizia sentir-se mais português por comer bacalhau, chouriças e beber bagaço. Esse era um fedor que se lhe entranhava nas roupas, junto com esse, o do tabaco dos outros da taberna, entrava pela cama lavada a cheirar a alfazema e roubava-lhe o odor a casamento feliz que tanto queria sustentar.
A mãe e o pai ainda tinham um casamento composto, tinham lá as suas coisas, mas qual o casal que não as tem? Viria a ser assim com o Ruben também. Era um bom homem, amigo de trabalhar, um bocado rude devido à educação que tinha tido. A princípio, quando vinha nas férias, até o achara peculiar e pensava que se poliria com o tempo, o convívio e o ficarem juntos em Portugal.
Mas era o Portugal dele. Não o seu. Não agora.
O marido era de perto da terra dos seus pais, uma zona de quintas bem perto de Lisboa. Visitavam os avós todos os verões, no mês habitual e o namoro com o moço despontou. Coisa de miúdos, quando se encontravam nos passeios de bicicleta, pelas pequenas florestas onde depois brincavam. Sandrine recordava-se sempre das histórias de bruxas quando passava por lá, devido ao marulhar esfregadiço das folhas quando havia vento.
Só nos seus 16 anos levararam o namorico da menina mais a sério num amargo fim de Agosto: Sandrine não queria, porque não queria voltar à França deles e pedia: porque não ficava a viver com os avós? Nascera lá, mas o coraçãozinho de jovem ficara só às últimas chuvadas de Verão porque os pais não permitiram que a sua menina de ouro interrompesse a escola e o sonho de a vir a tornar alguém na vida. A promessa de trabalho dos tios do marido, o sonho adolescente de um casamento perfeito e um irredutível Ruben de mochila às costas frente à casa dos pais sem aviso prévio, fizeram-na deixar os pais aos dezoito anos e vir para uma terra que nunca viria a sentir sua.

Três filhas depois sentia-se sugada, estupidificando a cada dia, numa casa sem graça no bairro escuro, como se um vagaroso torpor tomasse lugar da menina inteligente para os livros de escola, enquanto a sua bicicleta enferrujava nas traseiras do quintal.
Aquela noite não tinha existido. Não naquele momento mágico em que a hora de Inverno anda para trás e por isso mesmo nada tinha acontecido. Todos os dias pensava nisso e tentava focar-se apenas na ideia da hora que não tinha acontecido, por isso era tão fácil convencer-se! Contudo, nada ficou igual depois dessa hora em que nada, mas tudo aconteceu.

O Ruben chegou da taberna tarde como vinha sendo habitual. Estranhou quando o ouviu dar uma volta na fechadura da porta do quarto, apenas cerrou mais os olhos, encostou o nariz no lençol e fingiu dormir, como já se tornara seu hábito, tentando reter a lavanda nas suas narinas.
Só teve tempo de estranhar ele não se sentar pesadamente do outro lado da cama e atirar com as botas sem pensar que por baixo dormiam vizinhos: Estava do seu lado da cama e...
Pôs as mãos dentro da sua camisa de dormir e... fez o que não lhe foi muito confortável.
Sabia o nome da coisa, porque tinha dito veemente e repetidamente NÃO.
Honoré de Balzac dizia «Pode-se perdoar, mas esquecer, isso, é impossível.» Sandrine tentava esquecer, tentava ferozmente esquecer, sem se dar conta que nem perdoar conseguia. Talvez o que mais lhe custava desculpar fosse aquele momento, logo no inicio, quando se debateu, fechou as pernas e disse, “NÃO FAÇAS ISSO”, a valente chapada na cara e aquela voz bagacenta a ordenar: “ESTÁ QUIETA!”
Está quieta...?
Como se não fosse dona do seu ser, do seu querer ou não querer.
Não se ajeitou, tão pouco lhe facilitou a coisa. Parvamente recorda quando, desesperada, olhou para cima e na escuridão do quarto viu o neon da luz do despertador e se recordou que teria de mudar a hora.
Depois...
Quando ele saiu para o toillete, rolou na cama e limpando as lágrimas com o pulso dorido, recuou a hora do despertador. Esboçou um sorriso tonto e tentou evadir-se para o campo ensolarado lilás da plantação de alfazema que havia na propriedade onde os pais trabalhavam na sua França enquanto apertava o relógio contra si. Foi a primeira vez que lhe ocorreu esse pensamento a que se agarrava até hoje: A hora do nada. Porque se não existira, logo, nada se passara!
Havia ocasiões em que ponderava e a culpa era dela. Era um dever conjugal a que se esquivava frequentemente quando o Ruben bebia e, verdade se diga, recusava muito. Não suportava aquele cheiro a entrar-lhe pelas narinas e a bloquear-lhe a libido. Era mais fácil fingir que dormia e dormia muito.
Nunca falaram sobre aquela noite.
Ele solicitava e ela não se debatia. Assim. Função cumprida. Todos os dias.
Até que uma noite – daquelas em que Sandrine agora dormia mesmo muito com uns comprimidos que, entretanto, comprara – acordou e não o sentiu na cama a seu lado.
Nessa noite em vez de sentir alívio por ele não estar a seu lado... gelou.
As meninas.
Sorrateiramente foi espreitar o que podia estar a acontecer, mas um sonoro sopro anal vindo do toillete anunciou a localização de Ruben.
Entrou no quarto das meninas e foi beijar e aconchegar uma a uma no soninho descansado. Cheirinho a Alfazema. Perfumava-as sempre depois do banho antes de as deitar. E se... Não. NÃO!
Sabia que no bairro havia uma Associação de Imigrantes. Sabia que eram bastante activos com a população em perigo, não iriam negar ajuda a uma mãe com três filhas, como tinha conhecimento não negavam a ninguém. Uma vizinha cabo-verdiana perto dela andava a ser ajudava por esses senhores da associação, a outra família lá além também e percebia claramente tanto empenho e dedicação.
Deu duas voltas à chave do quarto das meninas e deitou-se na cama com a mais pequenita. Inspirou bem profundamente o ar impregnado de lavanda.
Não pensou no que tinha de comprar na mercearia na manhã seguinte: Mentalmente soube onde iria assim o sol amanhecesse.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sexo no Autismo, acontece...?

Perguntavam naturalmente ao Pedro se já tinha namorada. "Eu não!!," respondeu com aquele ar absolutamente imperturbado, "e depois tinha de fazer sexo com ela...!!" 
Claro que é anedótico e nos rimos - por vezes as famílias de autistas riem de coisas muito diferentes - mas se olharmos com seriedade para cada detalhe na convivência com um miúdo autista, podemos retirar aprendizagens inusitadas. 
Então os autistas não gostam de sexo? 
Se até os bichinhos gostam… 
Lá entramos de novo nas terras pantanosas dos tabus de que não se fala, não se diz. Pois, mas eu falo, questiono outras famílias, quero saber. 
Com o meu filho fica fácil, porque sempre me contou tudo, mas resguardo as nossas conversas. 
Que serviram de base para construir a personagem autista Xico? Sem dúvida que recheei as falas e pensamentos do Xico com as frases excepcionais do meu Pedro, mas o leitor nunca sabe se é o meu processo criativo, se é copy-paste do real. Benefícios de quem connosco priva, apenas.
Mas os autistas, são assexuados, é isso? Não. Ora, seria tão simplista...
Pela minha observação constato que na deficiência o preconceito impera, se confunde sexo com sexualidade, erotismo com inocência, que os julgam erroneamente por um todo, que decidem a bel-prazer apontando o dedo que neste caso é   assexuado ou neste outro só poderá ser hiperssexualidade! Não se pode colocar numa só embalagem com a mesma etiqueta tantas existências, tantas formas de ser, sentir e ver o mundo. 
Não me canso de repetir que se cada indivíduo formula o mundo num olhar diferente, tanto dos neurotípicos como dos seus pares e que, se a vida é absorvida, compreendida de uma maneira tão casuística, porque encarariam este tema em particular em bloco de forma una? 


No livro "AUTISTA, QUEM...? EU?" para além do Xico, mencionei um senhor dentro do espectro do autismo que até tinha conseguido casar e ter uma vida conjugal, mas que a determinada altura se decidiu divorciar, e ao anunciá-lo a sua mulher chorou. Resposta dele? "Não te preocupes, eu arranjo outra..." Mais uma vez o nosso olhar neurotípico acha hilário, mas o twist prende-se num detalhe único que faz toda a diferença. A intimidade. O toque. O dar e receber. O pensar no outro. O amar o outro.
É tudo tão arredio do autismo...
Daí ser até natural pensar: são assexuados. Mas o lado físico da pessoa com autismo cresce e nas idades certas acontece o mesmo que nos neurotípicos. É então que sucede, a quem destas pessoas cuida, a negação da sexualidade, o infantilizar das atitudes e um virar a cara para o outro lado. Para mim não faz sentido.
Sei que o meu filho já esteve verdadeiramente apaixonado - não vos vou contar detalhes, mas sentiu as tais borboletas no estômago, sofreu ao se ver trocado e foi à luta pelo que pretendia. Visto aos olhos da normalidade?, seria mais um de tantos namoricos, mas foi para mim emocionante e também muito divertido presenciar a ausência de malícia sem joguinhos de sedução e directos no ponto. Autistas até à quinta casa!, mas terrivelmente coerentes e correctos. Foi uma lição. Vi o meu filho feliz. E isso sim, para mim fez todo o sentido.
A forma como a sociedade repudia e estigmatiza as manifestações sexualizadas a estas pessoas, causa-me uma certa revolta. Muitas das acções que consideram ter uma carga sexual, serão as que não são pelos neurotípicos encaradas como tal, vá... vou considerar como um piropo: pode ser inofensivo e até nos fazer sorrir.
 (imagem de dois actores brasileiros não-autistas)  
Há quem passe por nós e nos afague os cabelos, ou simplesmente nos cheire os ombros. De notar que no autismo as sensações, as texturas, o odor, os sentidos são exacerbados, têm uma maneira tão diferente de sentir. 
Então serei eu que tenho dificuldade em aceitar que determinado gesto tem uma conotação sexualizada? Terá? E que seja...! Incomoda-me? Não. Deixo-me ser tocada, cheirada, afagada. Sinto que estarão a percepcionar o meu Eu. Tão simples como isso. Se não sinto erotismo no gesto, como o vou conotar como tal, só por não ser neurotipicamente falando aceitável? Há tantas acções (ou piropos) de neurotípicos que não considero de forma alguma normais e ainda assim são por outras pessoas conotados como aceitáveis...! 
Se é tudo tão relativo, porque não aceitar a diferença na diferença? 
Eu vejo desta forma: gosto dessa proximidade que é momentânea e por vezes, mágica. Já outros gestos ou acções denotam o que identificamos com clareza: uma erecção, ou a intenção de passarem a mão pelo nosso peito. Como reajo? Afasto a mãozinha antes de chegar lá, como faria a qualquer neurotípico! Com grande grau de probabilidade com um neurotípico eu sei que não seria tão afável.
Se pensarmos quantos ditos normais existem com transtornos inadequados para consolidarem um relacionamento amoroso... Porque todos nós temos pontos menos bons, quantas vezes nem disso somos totalmente conscientes ou racionais, e no entanto esses factos não interferem negativamente na satisfação entre um casal. No autismo - especialmente nos indivíduos com Síndrome de Asperger - pode até haver um desejo de ir ao encontro do outro e, porque não?, de ser amado, mas não haverá motivação suficiente porque acreditam que, se o fizerem, serão estigmatizados a partir dos padrões que lhes são impostos, por seus cuidadores e pela sociedade no geral. 
Tenho pena que não se invista no amor e sexualidade no universo autístico e simplesmente se entre no facilitismo de lhes prescrever medicação para 'acalmar as hormonas'. 
A meu ver, não se deveria infantilizar adultos. Têm direito à sua vida plena. Mais. Esta minha interrogação acerca do poder do amor e dos relacionamentos amorosos poder ser uma das improváveis mas possíveis soluções, vindo a abrir a porta ao desenvolvimento de comportamentos  sócio-comportamentais adequados e porque não, melhoramento dos cognitivos, apenas porque estão felizes...? Não seria caso de se ponderar sobre o que aconteceria?



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