quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ou ele ou eu

25 de Novembro é o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres. 
Um conto meu do livro "Mal Me Quero", porque este romance escrito há tantos anos,  ainda é tão actual. 

Mais do que o Manel que bate na Maria, fixei-me nos casos de que ninguém fala, os que não fazem queixa à polícia, os que não contam nem à própria sombra, os que chamei "os números calados". 
De toda a pesquisa que fiz, não contei uma história verdadeira. São todas ficção, porém as personagens vão parecer-lhes familiares. Uma tia-avó? A vizinha do 2º esq.? O irmão mais velho? Aquele colega de trabalho?
Sim.
A violência doméstica acontece mesmo debaixo do nosso nariz, aproveita-se do silêncio, vence no medo que a vítima vai tendo de enfrentar ou contrariar a tendência crescente do agressor ou agressora, medra ao mesmo tempo que a inércia, não se compadece de pedidos de perdão e-ai-que-nunca-mais-vou-fazer que só servem para os abusadores ganharem tempo e terreno, porque acreditem - fazem de novo e outras tantas vezes mais sem que a saciedade lhes chegue. Acontece debaixo de telhas bem perto de nós, onde não suspeitamos ou, até mesmo sabendo, não nos metemos porque entre marido e mulher não há quem queira meter a colher. 
Toda esta pesquisa ensinou-me a meter a colher. 
Desde 2010, a reacção a este livro é curiosamente calada. As pessoas não dizem publicamente que o leram, antes contam-me à boca pequena, no silêncio de um longo email como gostaram, aproveitam para contar a sua própria história, a passada e também muitas vezes a presente. Há pessoas que compreenderam que são vítimas ao ler uma história em que se revêem, há pessoas em que pressinto a mensagem verdadeira quando me confessam que não conseguiram ler tudo até ao final e aplicam um determinado motivo para o explicar.
Eu compreendo e aceito-o em silêncio. Evito dar conselhos (quem sou eu...?) na verdade para os meus leitores não tenho mais palavras a dizer para além das que escrevi neste livro. 
Mas acreditem, aprendi a comportar-me como cidadã e a perguntar a cada situação que veja na rua com voz bem firme: 
- Precisa de ajuda?

Fico muito grata a meus leitores por me continuarem a ler.




Conto "Ou ele ou eu" in Mal Me Quero 


De repente ficou desorientada, como se tivesse tomado consciência do que tinha acabado de fazer. Nunca lhe passara pela cabeça, nem nas ocasiões mais perversas que, um dia, pudesse chegar a este ponto. Mas esse dia era hoje.
E agora? Não era alívio o que sentia, tão pouco culpa... como explicar o que não concebia?, uma grande confusão de sentimentos contraditórios. Estaria em choque? Se estivesse, pensava, não seria tão consciente de todos os seus movimentos, pois não? Os que tinha acabado de fazer, os passos que teria forçosamente de executar de seguida, a falta de motivação e o poder irresistível de, por o ter feito, ter mudado todo o curso da sua vida. Arrependimento? Nem sabia. Fora um impulso, a oportunidade surgiu e nem pensou noutra coisa senão... morrer ou matar.



Não tinha visto toda a sua vida em flash-back como dizem nos livros. Agora sim, as imagens sucediam a uma velocidade vertiginosa: sabia que não tinha pretendido fazê-lo, mas, num momento de loucura, como fora este, teria realmente, por algum segundo, pensado em acabar com todo o seu martírio, ao pegar naquele horrível martelo dos bifes? Outro pesadelo estaria agora a começar, sabia-o bem. A cristalina consciência da sua situação era tão evidente quanto veloz: não parava de pensar que, provavelmente, estaria em estado de choque.
Olhou para o vaso derrubado com petúnias que tinha comprado para o jardim, havia terra por todo o lado. Se num primeiro impulso pensou em levantar a planta e limpar a terra, no seguinte, recordou os filmes da TV, em que não se devia mexer no local do crime. Crime...? Cometera um crime, sim! Ela perpetrara o mais terrível delito: matara uma pessoa, a mesma a quem prometera amar, respeitar, estar ao lado na saúde e na doença, até que a morte os separasse...
Seria presa, certamente. Quem iria acreditar na sua palavra se alegasse legítima defesa? Ninguém nunca iria crer que, logo eles os dois, tinham um casamento onde imperava o medo, o cinismo, a dissimulação. 
E sim, a cobardia. 
A dele, por a atingir a cada olhar, a cada ameaça, a cada murro. A sua, por o esconder, o encobrir e o perdoar.
Ainda a limpar as mãos na toalha da cozinha, cuidou que o tinha visto respirar. O peito parecia que subia e descia! Aproximou-se a medo. Lembrou-se quando, em pequena, viu um morto num acidente de viação, também o peito dele subia e descia e nem estava no estado que o marido estava... Impossível estar vivo com a cara naquele estado! Deu-lhe um pontapé no pé. Morto. Só podia ser algum reflexo involuntário, alucinação sua, uma brincadeira de mau gosto da sua mente. 
Seria presa, decididamente. Fugir não era opção. Só foge quem quer escapar de algo que fez de errado. Teria sido assim tão errado matá-lo? Ele ia matá-la, senão desta vez, da próxima, ou na seguinte. Sabia, havia muito tempo, que eventualmente morreria às suas mãos. Seria tão errado não querer para si esse fim? Seria assim tão errado querer viver?, fugir desse filme de terror em que se transformara o lindo romance de amor que deveria ser o seu casamento?, se não vivessem todas sempre à espera do príncipe e do cavalo branco, pensava, talvez as expectativas não fossem tão altas, quiçá, tendo fechado o canal cor-de-rosa, pudessem avistar um calhorda na roupagem alva logo à distância!
Devagar, tacteou a cara. Conseguia ver as suas próprias bochechas, devia estar jeitosa... a toalha húmida soube-lhe bem no rosto dorido. 
Porque é que permitiu tanto? Porque é que perdoou tanto? Podia ter acabado as coisas antes do casamento. Sim, naquele longínquo dia, devia ter percebido que não se iria meter em coisa boa, mas já tinham comprado a casa, os convites já tinham sido enviados e os sofás eram tão bonitos... hoje parecia-lhe uma futilidade de motivos, mas percebia agora, claramente, que já era o medo a nidificar em todos os poros do seu ser, serenamente, sem permissão, sem deixar sinal, a impossibilitá-la de pensar no assunto, de reagir. Podia ter sido no dia do casamento, quando o seu antigo namorado telefonou e lhe pediu para não o fazer, podia ter sido no primeiro dia em que a desancou sem motivo, podia ter sido... ontem!, mas nunca conseguiu verdadeiramente pressionar o botão agir... Mas, seria preciso matá-lo? Seria. Mil vezes, seria! Jamais teve ou teria coragem de mexer-se! Jamais respondeu empregando semelhante tom, nunca virou ou viraria as costas, nem tentou ou tentaria argumentar, fugir então...
Aproximou-se. Mortinho da silva! Agora não a atingiria. Aproximou-se mais um pouco. Tentou decifrar o significado da expressão intacta no lado direito do rosto desfigurado. Estranheza? Pasmo? Estupefacção? Não. Não era isso. Era... sim, era medo! 
Ele tinha sentido, no último momento da sua vida, medo dela. Ele tinha tido medo! A primeira sensação foi sentir-se vingada, mas não era bem um gosto a vitória, sabia a amargo. Veio a tristeza. Ele tinha uma cara tão bonita, a mãezinha dele, sua sogra querida, nunca a perdoaria... 
A euforia. Precisava de ajuda... não sabia como ou o que fazer, para onde ir ou ligar, mas... ele estava ali, no chão, caído, ela matara-o, mortinho, matado!
Era tão frágil a vida humana, um gesto, num ápice e ceifa-se uma vida. A poça de sangue escuro nauseava-a. Limpava continuadamente as mãos ao pano. Nunca pensara deveras quão precária pode ser a existência do ser humano. Num ápice azarado, podemos apanhar com o vaso do inquilino do segundo esquerdo que, sem se dar conta, sacode despreocupadamente um tapete, ou inocentemente atravessar uma estrada no momento errado, em que um condutor zeloso, para se afastar da clássica situação, a criancinha que corre atrás da bola, vira repentinamente e, ao escolher a direcção contrária, atinge-nos sem sentido, ou então, pode simplesmente acontecer, como hoje, quando a nossa cara-metade nos faz a cara em metade. 
Tão forte que ele era, pensa, tão fácil que foi. Acabou. Mal, ele não lhe faz mais! Acabou. Respira profundamente. Passa as mãos pelo cabelo, afastando-o do rosto dorido. Está horrorizada com o formato inócuo e desresponsabilizado que todo o seu ser parece adoptar em relação ao que acabou de causar, a facilidade com que o fez, a displicência de quem não tem nada a fazer ali, contudo, no mesmíssimo segundo, sabe e sente a culpabilidade, aguarda a punição, a espera: foi um acto que não tem desculpa possível, nem sequer a do instinto de sobrevivência, de ter estado a lutar para salvar a sua própria vida. Nunca deveria ter permitido que o rumo dos acontecimentos tomassem o leme na sua existência, devia ter feito... poderia ter feito tanto! 
Pensou na mãe, na sua mãe, no que sentiria quando lhe dessem a notícia, como reagiria quando a soubesse presa? No emprego, certamente iriam preencher o seu lugar quando a soubessem uma assassina! Os amigos, os vizinhos, o que iriam dizer? 
Foi até à janela e ficou a olhar as gotas de chuva que escorriam pela vidraça. Amanhecera. Caía uma chuvada valente de pingos grossos. Abriu a janela para escutá-la melhor. Sorriu ao cheiro bom de terra molhada. Aspirou-o profundamente, como que a degustar o seu novo momento. Paz...? Estranhamente, não tinha vontade de chorar, como, achava, seria normal acontecer. Engoliu em seco, doeu-lhe a garganta. Veio-lhe à lembrança as mãos bojudas em torno do seu pescoço, a correria pela casa... olhou em volta – parecia o cenário de uma guerra. Não era o que tinha sido? Desta vez tinha lutado firmemente, não se resignara em apanhar umas biqueiradas placidamente, como se a reacção tivesse sido mandada de folga, desta vez reagiu! O seu marido tinha ficado atónito com a primeira caçarolada na cara, nunca o havia feito e apanhou-o desprevenido. Acto contínuo, como seria bom de ver, ficou mais violento, bateu-lhe com as duas mãos bem abertas, como tão bem fazia, mas, desta vez esqueceu a precaução de não a marcar no rosto e bateu até a ver com a cara num bolo. Devagar, tacteou de novo a cara. Incomodava-a o inchaço, poder ver as próprias bochechas... 
Recordou esse instante... Sim, claro!, ela não tinha tido a intenção de o matar! Fechou a janela e voltou a olhar para aquele corpo inerte. Chegou bem perto e afastou-lhe a franja no lado intacto da cara. Amava-o apesar dos pesares... Ele parara de bater, olhou-a no rosto e viu o que tinha feito: ela achou que tinha terminado a investida do dia. Já suspirava de alívio quando sentiu que ele abrira a gaveta dos talheres e, enquanto remexia, ameaçava: “Achas bem a colher de pau, querida? Já estão fora de moda! Hoje vou usar uma faca, ou preferes um martelo, não deve ser giro?” 
Não fora nada giro. Inicialmente apenas fugira, quando encurralada, ela ainda achara que não a iria matar, apenas a queria intimidar, era o costume, este era apenas um novo instrumento, mas um brilho novo no seu olhar que, momentânea e estupidamente, a fez lembrar o capitão Gancho, assustou-a. Era desta! O seu inferno ia ter um fim. Gritou. Gritou muito alto. Ele tapou-lhe a boca. Ela nunca gritava, e os vizinhos?! 
Fora aquele o instante. O martelo deposto ali ao lado... nunca mais... nunca mais... nunca mais... nunca mais me tocas... nunca mais me bates. – Murmurara a cada investida. 
O céu estava carregado. Ia ser outro dia de chuva forte, tinham dado trovoada. 
- ‘Tá lá? É do 112? Olhe, desculpe, mas eu matei o meu marido. 



Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...