quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Porquê um livro sobre este tema, Ana?

Faz agora um ano que segui muito de perto a viagem que o Pedro Lapa fez e a que chamei “O carro que veio de Aveiro”. Não preciso que as memórias do FB me lembre as datas e momentos que em mim ficaram gravados debaixo da pele.

O Pedro foi porque não conseguiu ficar sentado no sofá a assistir pela TV ou redes sociais ao que acontecia, e eu fiquei. Combinámos que seria os seus olhos, voz e coração: eu escreveria o relato da sua viagem, a cada dia ia telefonar-me e transformaria as suas palavras em textos que publicaria no meu site, nas redes sociais.
Parecia simples, mas não foi.
Relatava-me o que via de voz quase apagada, embargada de tantas emoções, muitas as vezes que chorámos juntos, na incredulidade, pelo que presenciava, tanto o que as notícias não veiculam. Acreditamos que tivemos os telefones sob escuta, fui ameaçada, mas os textos não pararam de ser publicados a cada dia.

Hoje acredito que esta viagem mudou cada uma das pessoas que se envolveram nela das mais variadas maneiras, trazendo ao de cima a essência de cada um. Mas eu escrevi sobre a viagem do Pedro e sobre o carro que veio de Aveiro e é sobre isto que hoje continuo apenas a querer falar.  

A cada um dos 10 dias de viagem, eu escrevi e publiquei um texto. Os telefonemas que o Pedro me fez, o que ele viu, escutou e me transmitiu quebraram algo em mim. O que ele sentiu, sendo um homem tão bom, ainda hoje, depois de tantas conversas que já tivemos, continuo a crer que seja bem mais profundo do que consegui em alguma vírgula pôr naqueles dez textos, do que ele mesmo consiga explanar por palavras ou pelo seu olhar.

A viagem terminou com um resultado maravilhoso: foi justamente no carro do Pedro, o carro que veio de Aveiro, que trouxeram uma família síria para Portugal, Ali, Nada com as suas três filhas. Hoje a viverem em Ovar, as meninas a frequentarem a nossa escola, a Nada a cuidar da família, o Ali a trabalhar e a sustentar a sua família honestamente como sempre quis fazer. Um sorriso no rosto, uma voz serena, uma vivência que diz atirar para trás, que o futuro são as suas meninas, e de novo todos atados, agora numa corda invisível, rumo à paz que em Portugal podem viver.

Quando digo que algo quebrou em mim, visualizo-o como uma casca de ovo, porque a viagem do Pedro em mim resultou num renascimento. Envolvi-me muito mais do que esperaria e após a chegada, quis continuar a escrever sobre este tema, apenas escolhi outro caminho, o meu, o da ficção e faz agora também um ano que me embrenhei na ideia, no nascimento do livro que agora tenho em mãos.

É um livro de Amor. Assim começa e assim acabará. Amor. Será através do amor que tenho a veleidade de vos contar a guerra, porque só assim consigo conceber como escrevê-lo.

Comecei com um título, como de resto sempre começam os meus livros e daí desenrolo o fio de todo o enredo na minha cabeça. Criei personagens, dei-lhes nomes, vida. Dei-lhes uma cidade – Lattakia, e uma outra cidade – Aveiro. Dei às minhas personagens um propósito, existências felizes e harmoniosas ou simplesmente normais. Pesquisei, continuo a pesquisar tanto sobre uma vivência que nós, com uma vida ocidentalizada, desconhecemos porque não nos aparece nas notícias.

Hoje tenho uma mão-cheia de pessoas sírias que continuam generosamente a contar-me, não só as suas difíceis e dolorosas histórias da travessia até à paz (relatos que me deixam sem voz, sem mais perguntas a fazer, apenas pouso o lápis e escuto, de olhos arregalados a sentir um imenso murro no estômago), como me contam detalhes importantes para mim de forma a saber reconhecer cheiros, sons, e saberes, povoam a minha imaginação com as suas realidades, expectativas e sonhos. "Põe isto no livro, Ana, é importante." E eu vou pôr todo esse colorido que me ensinaram a ver. São formas de ser e pensar de um povo que aprendi a respeitar. Aprendi que os sírios - mais que as outras nacionalidades do médio-oriente - são como os portugueses: gente boa, afáveis, bons anfitriões, brincalhões, são um povo gentil e generoso - são como nós.

,E depois a guerra, estúpida sem sentido que assola a Síria há cinco anos, que destruiu cidades inteiras, monumentos, a identidade de um povo cuja história remonta às mais antigas do mundo, uma perda sem tamanho para a humanidade. E depois... uma fuga incomensurável, uma corrida da morte certa para uma liberdade incerta, uma maratona pela Vida, pela Paz, pelo Amor.

Faz agora um ano que comecei a escrever a maratona das minhas personagens. E penso que já passei o meu km 32. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

'Bora pintar um banco?

Por conta de um convite da organização do Vivóbairro, vi-me a pintar um conto de um livro meu num banco de jardim. Eu conto. 


A cada artista seleccionado foi-lhe atribuído um banco de jardim pronto para ser pintado, dos muitos distribuídos por este bairro de Aveiro, tendo total liberdade na sua criatividade desde que respeitasse a sua função principal - um banco de jardim para as pessoas se sentarem.
Na Praça Marquês de Pombal, mesmo junto ao posto de correios aí existente, estava um disponível que me foi atribuído. Inicialmente pensei pintar cartas e postais a voar na direcção do edifício dos CTT, que depois evoluiu para esta outra ideia, visto que no meu primeiro livro publicado há um conto - uma bonita história de amor - em que o narrador é um postal. Isso mesmo, um postal dos CTT. Partindo do princípio que todas as histórias de amor serão lindinhas, o twist está na forma original de as contar para não ficarem sensaboronas (já Pessoa reclamava disso), então o recurso que usei no "Promessas de Verão" foi exactamente esse, criei um inusitado narrador, o postal que se extravia que faz com que os dois enamorados se desencontrem, e no seu afã de ser portador da boa nova, vai acompanhando ao longo do tempo a história de Luís e Lara. Assim, e tendo esse conto, não me limitei a pintar postais e cartas esvoaçantes, antes intentei pintar (contar) o meu conto no banco de jardim.

Quero mesmo agradecer a todos que ajudaram no processo, às pessoas dentro da organização do bonito projecto Vivóbairro que ao longo de muitas horas de intenso calor ou gélido vento nos apoiaram, trazendo mais uma garrafa de água, um material em falta, uma palavra de incentivo, um sorriso, aos muitos, mesmo muitos turistas e aveirenses que pararam o seu caminho, meteram conversa, fizeram perguntas, levaram fotos de recordação (até quiseram figurar nas fotos do making of), aos colegas artistas dos outros bancos na generosidade com que partilharam materiais, ideias e o seu tempo em conversas boas, também aos amigos que acarinharam e tiraram fotos (deixo-vos com o making of). 
Aproveito o ensejo para aqui republicar de novo este bonito conto que escrevi há tantos anos e exactamente por esse distanciamento, ao relê-lo emocionei-me. Gosto mesmo deste conto!! 




Promessas de Verão

conto publicado no livro CONTOS DE VERÃO, 2004

por Ana Martins

“Hoje sinto que vou embora” disse o dos malmequeres amarelos.
“Pois eu acho que tenho mais probabilidades” disse o dos corações vermelhos.
“Já eu” disse o do moinho de vento revoltado “penso que não tenho hipótese nenhuma desde que me dobraram… não sei que faça a este vinco!”
“Convenhamos meus amigos… desde que os do outro lado chegaram nenhum de nós tem segurança”
reclamou o da enseada.
“Tens razão” disse o do burro “vamos por cá ficar tanto tempo que acabamos encarquilhados, empoeirados e esmaecidos do sol.”
Do outro lado do expositor o da praia sussurra ao da falésia: “É só inveja….” ao que o colega responde: “Nós temos o dever de ser tolerantes com os do outro lado… não temos é muito tempo para pensar nisso já que estamos sempre de saída!” Riem sarcásticos com satisfação.
O dos malmequeres amarelos agita-se: “Cliente, cliente!”
Uma senhora aproxima-se com o filho pela mão. Roda o expositor para a esquerda, depois para a direita, mais uma vez para a esquerda. O filho brinca com os porta-chaves que estão num cesto. “Não mexas nisso.” diz-lhe maquinalmente. Baixa-se um pouco para ver os da fila debaixo. Mais para a direita e retira dois postais. Dirige-se ao interior da loja recomendando ao filho: “Rodrigo tem maneiras.” depois pergunta à empregada se também vende selos. “Lá está ela, queres ver…?” pergunta o da baía para o do hotel.
“Temos sim, minha senhora. São para o estrangeiro ou para cá mesmo?” pergunta solícita a empregada.
A senhora responde-lhe que são para o continente. Prontamente a diligente empregada sugere a novidade desse Verão: os postais pré-selados. Sorri acrescentando feliz: “Muito mais em conta!”
Quando se dirigem para o exterior da loja a Mãe ralha: “O que é isso Rodrigo?” O ladino fazia o expositor rodar veloz “Vai na mecha!” ainda respondeu.
A empregada num gesto parou o rodopio e mostrou a fileira dos novos postais. “Deixe estar, não tem importância, são crianças…” garantiu à freguesa.
“Deixe estar…? Deixe estar o tanas! Estou mais tonto que sei lá o quê…” reclama enjoado o do moinho.
“Estou a alucinar ou vêm aí mais…?” questiona-se zonzo o do burro.
“Cliente, cliente!” avista o dos malmequeres amarelos excitado.
Um grupo barulhento de raparigas rodeia o mostruário escolhendo entre comentários mordazes e muita risota para quem escreveriam e o quê.
“Estou fartinho destas piadolas… não há imaginação nenhuma nesta juventude?” grunhe o do burro.
Devidamente abastecidas as moças preparam-se para pagar quando uma delas repara: “Ó Lara, ide trocar o teu, carago! Está todo encorrilhado!”
Lara sorri assegurando ser único. A amiga insiste dirigindo-se à empregada: “Menina? Tendes outro?” a empregada meneia a cabeça numa negativa. “O que temos está à vista… temos é uns mais baratos porque já têm selo!”
Os amigos despedem-se rapidamente enquanto são pagos. “Pode ser que nos vejamos pelo caminho! Até sempre!”
“Ó Lara, não entendo… compra outro!” insiste a amiga.
“Deixa, este é perfeito.” diz Lara acariciando o vinco bem marcado.

Nunca pensei que fizesse tantas cócegas nas costas… Será que demorará muito tempo...? Gostava tanto de conseguir ler o que está a escrever… Que nojo! Seria preciso encher-me de baba? Nunca ouviu falar de cola? Boa! Encostou-me ao espelho da cómoda, vou conseguir espreitar!




Esta agora! Vou ser portador de uma boa notícia… é a melhor das finalidades!

Lara dirigia-se à estação de correios enquanto falava ao telefone com uma amiga sem poder suspeitar quem a escutava com atenção. Detalhadamente contou tudo sobre a pessoa que lhe estava a mudar a vida.
Os planos. Os sonhos. A saudade.
Enquanto falava, beijou-o, antes de colocar o postal serenamente na ranhura.
Escorregou pela parede fria.
“Moinho! Moinho! Aqui à tua esquerda!” saltitava o do burro “Vieste mesmo a tempo, a tiragem é agora às seis…”
“Levo boas novas!” gritou histérico “Que mais poderia querer, dizes-me?”
“Eu nunca esperei ter esse destino… não com a foto que carrego! Pelos comentários das miúdas vou enfurecer uma certa besta amansada… Mulheres!” Riram com gosto trocando as que ambos sabiam ser as últimas palavras.
O funcionário abriu a portinhola e inundou de luz o receptáculo.
“Dá aí uma mãozinha, acho que estou entalado aqui neste friso” gemeu contorcendo-se “Céus, estou colado aqui em baixo! Aquela saliva toda… Ajudem-me, não posso ficar aqui! Sou portador de uma boa notícia! Ajudem-me!”

Mas ficou.
Preso. Esquecido. Extraviado.
Nas primeiras tiragens ainda gritava, contorcia e retorcia-se, irremediavelmente trincafiado. “Sou portador de uma boa notícia” repetia a cada tiragem. Depois… Um envelope almofadado bastante pesado caíra-lhe em cima atordoando-o.
Acordou-o o dos malmequeres amarelos.
Deprimido reparou na data de um pré-selado que lhe oprimia um canto. Arregalou os olhos. Maio de 1986?
“Amigo, ainda aqui estás?” perguntou o dos malmequeres amarelos.
“Amigo, só agora vens?” respondeu vagaroso, profundamente desalentado. “Ajuda-me por favor que era portador de uma boa notícia…” murmura agastado.
Na tiragem seguinte todos auxiliaram: “Um portador de boa notícia tresmalhado por dois anos é muito triste” concordou o pré-selado. Num assobio chamou todos os congéneres para dobrarem as pontas amalgamando-se numa imensa cadeia postalérica.
“Cuidado! Não lhe rasguem o selo senão acaba no Cabaz Azul!” gritou aterrado o dos malmequeres amarelos.
Fez-se um silêncio.
Qualquer epístola que se prezasse tinha um pavor insustentável do funesto cabaz onde sempre cabia mais um envelope, encomenda ou postaleco sem forma de ser entregue, esperando o improvável momento de ser reclamado.
Um almofadado pequeno esgueirou-se para baixo e capitaneou os movimentos. “Agora, podem puxar!” afirmou convicto enquanto descolava o pedaço de selo.

Dois dias depois estava numa caixa de correio em Alforgoges.

Luís estremeceu ao abrir a portinhola. Um moinho?

Porquê molhar-me com estes pingos? Porquê que grita? Eram boas notícias…

Luís abriu o bocadinho de papel que o moleiro lhes tinha emprestado. Numa letra redondinha estava o contacto de Lara. Afinal era de Lisboa. Nunca havia aberto aquele pedacinho de papel. O combinado seria ela abrir primeiro… ou não.
“A mana mora na casa nova desde o casamento… quem fala?” dissera uma voz de criança do outro lado da linha.
Luís passou as mãos pela cara, pelo cabelo, despenteando-se, por fim, apoiando o nariz entre os indicadores. Mais uma vez, tentou rever a estória como realmente teria acontecido. E ele que, injustamente, durante todo aquele tempo pensara que Lara, a menina de cidade grande, o tinha ignorado por ser um labrego agricultor provinciano!
Pegou no postal, de novo revendo a data, endireitando os cantos, acariciando o tom mais amarelecido numa ponta. Levantou-se e foi até junto da janela. Examinou o postal na claridade do dia demoradamente por outro ângulo.
Sim, aquele pedaço esteve claramente mais exposto ao sol.
Sim, aquele postal estivera retido por muito tempo sabe Deus onde.
Sim, tempo demais…

A Lara acha que ignorei o que me escreveu… foi isso! Pensou que a tentei conquistar naquele Verão e ficou vexada porque nunca lhe respondi. E agora?

Agora Lara tinha casado.
Luís dobrou cuidadosamente o postal pelo vinco e guardou-o na sua carteira.

Ela estava tão feliz quando me comprou… Percebi-o, quando me encostou ao espelho e li, não tinha importância a marreca do meu vinco… eu era perfeito!

Meteu-se na carrinha.
Aquele era um caminho que evitava mas agora queria revê-lo.
Ficava num cabeço bem arejado no Monte Venturo, apenas a uns escassos cinquenta quilómetros de Alforgoges. Havia sido caiado. O moinho, imponente na sua alvura parecia saudá-lo de novo e Luís circulou ligeiro até debaixo da janela altaneira na retaguarda que, cúmplice, o espreitava através do lintel de pedra.
Já não estava lá, havia sido tapado pela caiadura mas, passando a mão pela grossa parede areada, podia senti-lo gravado na pedra, vibrante e vivo. Roçou a ponta do dedo pelo perfeito ângulo recto que desenhava as duas letras entrelaçadas.
De madrugada quando o moleiro chegou estava sentado à espera.
“Se calhar não se recordará de mim, mas pedi-lhe um pedaço de papel aqui mesmo há uns dois anos e emprestou-me o seu lápis…” disse de rajada.
“Nããã havera de recordar… Luís e Lara! Se os tenho apanhado maganos… Atããão vossemecês escrevinharem-me a mão de cal! Ah! Por esses dias afora estava-lhes cá com umas ganas…!”
Sorriu timidamente enquanto com o polegar levantava a ponta da boina para coçar a cabeça. “Ó ti’Jaquim… desculpe lá o mau jeito” balbuciou. Mas uma dúvida assaltou-lhe de supetão o espírito: tinham efectivamente, com um canivete, feito um enorme coração com as suas iniciais. Tinham brincado por, em ambos os casos, ser a mesma e terem nomes compostos de quatro letras... mas em momento algum os tinham escrito, nem tinham falado disso ao moleiro quando naquele derradeiro encontro pediram o pedaço de papel. A pergunta fervilhava-lhe na mente quando o ti’Jaquim respondeu: “Deixe-se lá disso agora! A sua moça tratou logo do pagamento do prejuízo, ela nããã lhe contou que veio por cá?”

Luís voltou aos Alforgoges mais desalentado. Lara tinha voltado lá antes ou depois de ter escrito o postal? O moleiro não tinha as respostas que ansiava ouvir e custava-lhe a crer que Lara tivesse regressado apenas para mandar pintar por cima todos os vestígios do que juntos tinham gravado na parede.
Sentou-se numa pedra, retirou a carteira do bolso e puxou pelo postal.
«Tua para sempre» uma pessoa não escreve tua para sempre para de seguida casar com outro… o que teria sucedido?

Nunca me conformei. Poderia ter proporcionado tanta felicidade… O meu propósito nunca foi atingido e vinte anos volvidos não me consigo resignar a não ter cumprido a minha missão. Outros vinte poderão passar e não aceito. Cada vez que me tira da carteira e me relê consigo sentir o olhar pesado passar por cada contorno de cada letra, reescrevendo-me ao passar por cada palavra. Gasta-me quando passa o dedo nodoso pela assinatura, doem-me os cantos cansados e os vincos meio rasgados, entristece-me a tinta que ainda me escorre pelas costas esborratada a cada pingo. Nestes anos que passámos juntos tanto me beijou avidamente como veementemente amachucou as minhas entranhas acabadas de tanta espera. Nunca me vou conformar com o sofrimento que provoquei por me ter deixado amofinar. Porque não gritei mais alto, porque não gritei mais forte?

Luís habituara-se a visitar amiudadamente o ti’Jaquim.
Tinha angariado ao longo dos anos a boa reputação de não aumentar no peso nem roubar na maquia como outros moleiros faziam. Mas os tempos eram outros! O moinho só continuava a moer devido à carolice do senhor Presidente da Junta que o remunerava com um gordo subsídio estatal por atrair os turistas à localidade. A vizinhança agradecia comprando-lhe de vez em quando da sua farinha, basicamente para fazerem bolo podre. Também Luís levava sempre um saco de juta quando aparecia. Gostava de ficar à conversa na soleira da porta, ficar a saber as novidades dadas pelo conversador ti’Jaquim e reconhecer os boatos que ajudava a espalhar.
Fora com surpresa que naquela manhã vira o moinho com o velame enrolado e uma placa de uma imobiliária pregada na porta fechada.
Desceu até à cidade procurando o escritório.
Ficou muito abalado com a notícia da morte do seu amigo.
Aparentemente os herdeiros queriam vender o espólio do avô mas ainda estavam enredados com a melhor forma de gerirem as partilhas.
Luís sabia ter posses suficientes para adquirir o moinho e, querendo preservá-lo daquela sordidez mercantil, num ímpeto perfeitamente lúcido, resolveu apresentar a sua proposta.
O empregado confidenciara-lhe que a parada estava bastante mais alta pois a Câmara queria o moinho para património municipal e havia um gabinete de arquitectos com o imóvel debaixo de olho e entre eles estava a disputa pela compra da propriedade. Os terrenos em volta eram todos pertença do humilde ti’Jaquim. Quem diria? Segredara-lhe inclusive os montantes aproximados em despique desses candidatos. Luís ficara na dúvida se não seria bluff para o fazer aumentar a sua proposta. Resolveu sair argumentando que iria ponderar. Parou no alpendre para guardar o cartão do vendedor na carteira. Havia algo nele que o inquietara, não sabia exactamente o quê…
Uma senhora subia a escada preparando-se para entrar e agradeceu a Luís que se afastou instintivamente para lhe dar passagem.

Então, então, então…?! O que se passa? Volta atrás, VOLTA JÁ PARA TRÁS!!! Não viste que era ELA, não lhe reconheceste a voz? Eu não acredito que passaram um pelo outro sem terem reparado… Então, então… não feches a carteira agora que eu quero ver o que se passa! Ora não querem lá ver a brincadeira!

Não voltara à agência. Fora um impulso visceral, para que é que ele queria um moinho? Só não queria que o destruíssem…
Poucas semanas depois, ao perfazer a curva, levantou o olhar e viu os andaimes. No regresso subiu ao cabeço e meteu conversa com o empreiteiro da obra. Ficou a saber que o novo dono ia reestruturá-lo para habitação. Ficou também a saber que se ia conservar no tecto cónico o característico cata-vento e que se encomendara materiais o mais semelhante possível aos de outrora. As paredes com mais de um metro de espessura seriam preservadas, não iriam ser escavadas para dar mais habitabilidade; os lintéis de pedra nas molduras das janelas e da porta estavam em boas condições e seria conservado; o telhado que era de tábuas de madeira cobertas com lona e impregnadas de alcatrão, louro e pés, esse sim, teria de ser substituído por uma tela impermeabilizante.
Luís ficou feliz por verificar que o comprador tinha o tino de não destruir artisticamente aquele local. Durante muito tempo foi passando e admirando a beleza do moinho a ser realçada nos mais variados detalhes. Até o enferrujado cata-vento tinha sido recuperado pelo forjador local e reconduzido ao seu altivo posto.

Gostava tanto quando se sentava naquela mó, me tirava da carteira, endireitava os meus vincos sob a brisa fresca do monte… nunca mais foi até ao moinho. Devo confessar: Eu sentia-o como uma homenagem! Ficava tão envaidecido…

Na realidade Luís partira uma perna numa queda aparatosa de cavalo na sua herdade e estava impossibilitado de conduzir. Havia sido uma tortura para um homem tão activo ver-se obrigado a estas férias involuntárias. Verdade fosse dita, merecia-as. Passava o tempo no alpendre com o portátil ao colo tentando colmatar trabalho atrasado, mas Luís era homem de acção! Mais que a perna era o vazio desocupado que o deixava doente e, o tempo disponível atraiçoou-o.
Lara.
Na verdade, por muitos anos que já se tinha apaziguado com o seu sentimento, sabia que nunca se interessara verdadeiramente por nenhuma outra mulher, provavelmente nunca aconteceria e Lara povoava os seus sonhos, imaginando-a em mil cenários absolutamente irreais, sem ter tido a hipótese de saber o que teria feito da sua vida, nada excepto que tinha um irmão mais novo e um marido. A imagem de Lara era difusa e distante. Ficava bastante aborrecido quando por instantes se apercebia que já não conseguia lembrar-se de certos detalhes do contorno do seu rosto ou da candura do seu sorriso. Houve serões mais amargurados, sentado à lareira, em que se agarrou a um gargalo até tombar profundamente adormecido.

Tinha tanto receio quando abria a carteira nos serões frios de Inverno e se aproximava perigosamente da lareira… como se precisasse de mais luz para ler o que já sabia de cor…! Estar tão perto do lume fazia-me temer pela minha vida. E se tivesse daqueles ferozes ataques de cólera e me atirasse às chamas? Quando via nas cercanias uma garrafa levada vezes demais à boca confesso que ficava transido de medo...

Tinha ido ao hospital tirar o gesso e no caminho iria ficar com atenção à curva. Como era o caseiro que o conduzia, permitiu-se ficar a olhar por mais tempo que costumava. Ah! Nunca tinha reparado que daquele cume dava para ver o moinho, mas quando se vai ao volante não se consegue girar o tronco todo e ficar a olhar pelo vidro traseiro! Havia tanto para ver… Em vez do costumeiro mato em volta existente no tempo do ti’Jaquim havia agora um tapete verde realçando a brancura das paredes e contrastando com a porta nova pintada de azul. A do ti’Jaquim era verde, não era…? Pareceu-lhe ver que a frente estava agora ajardinada, mas ainda assim, não dera tempo de perscrutar tudo como deveria e queria. Nada disse no entanto ao Garrocho; olhou para ele que falava desbragadamente de umas moçoilas que trabalhavam na herdade do Silveira, esboçou um ligeiro sorriso e perdeu-se nos seus pensamentos. Voltaria ao moinho sozinho, quando por fim pudesse conduzir.
Antes da curva estava absolutamente imbuído nos seus pensamentos, quando se deu conta, tomou sentido no que o Garrocho dizia:
“Ééééiiii, finou-se o ti’Jaquim moleiro e os netos foram sete cães a um osso… É como lhe digo! Enquanto não venderam tudo não foi nada! Ao Libório é vê-lo na taberna a entornar copos logo pela manhãzinha, é o que diz o povo… aos outros não conheço. O senhor Arruda alembra-se do Libório o finório? Chegou a trabalhar para nós quando não via o mundo pelo fundo de um caneco. Ééééiiii, o moço tinha uma jeiteira para tratar do jardim, como nunca vi igual! É como lhe digo! Enquanto não deram conta do moinho… olhe bem para aquilo senhor Arruda… O senhor que tem estudos, diga-me lá se é preciso virem de Lisboa para botarem relva nas nossas pastagens, onde é que já se viu?”
Luís suspirou e fechou os olhos… definitivamente voltaria ao moinho sozinho, quando por fim pudesse conduzir!

Deixou passar um e outro fim-de-semana com receio que os novos donos o encontrassem a bisbilhotar na sua propriedade e, na verdade tinha muitos afazeres pendentes enquanto estivera retido no alpendre de perna estendida. Estacionou um pouco longe e caminhou até ao cabeço a pé.

Estranho… não terem vedado a propriedade. Sendo de Lisboa e tudo…

Tinham feito um carreiro empedrado que conduzia a um telheiro para os carros e mais adiante um quinchoso, como os mais antigos chamavam às suas pequenas hortas. Aproximou-se do moinho e sorriu ao verificar que a porta azul era efectivamente de madeira e não de alumínio. Dois renques de hortenses de um bem conseguido azul celeste ladeavam a entrada. Passou a mão pela parede e sentiu a finura da textura… Havia sido rebocado e pintado! Correu em redor do moinho e ficou parado, por muito tempo, debaixo da janela altaneira.

Ficou estático, atónito sem poder acreditar! Deu dois passos atrás e tropeçou numa mó. Ficou sentado quedo num pequeno jardim enfeitado com mós. 

Agora percebo porque não foi vedada a entrada, agora percebo porque foi escolhido exactamente este local para fazer o jardim das mós, agora percebo…

O único sítio que não tinha levado reboco estava pintado em tons de lápis-lazúli: O coração com as duas letras entrelaçadas ganhara vida quando um pincel passara pelo sulco apaixonado gravado na pedra há mais de vinte anos…
Só podia!
Quem mais o faria…?

Ena, ena! Hoje sinto-me homenageado! Tinha tantas saudades que viesse a este sítio… esta brisa fresca faz-me bem para desentorpecer a meu reucártico… Mas o que é que ele está a fazer? A meter-me num envelope…? Não, não, NÃO! Que tenho trauma de caixas de correio! Homessa! Porque é que fez isto comigo? Não podia fazer isto comigo, pensei que iríamos ficar juntos até ao fim. Com franqueza, deixar-me dobrado e de costas para o bilhete dele, como posso ler o que lhe passou na ideia? Ainda bem que não fechou o envelope, sempre posso esgueirar-me. Ah! Até que enfim! Deixa-me desdobrar que não posso com dores… já tenho uma certa idade não posso ser tratado assim! Ora bem, deixa-me cá inspeccionar a correspondência: este logótipo é da Câmara que eu conheço bem. Deixa cá ver… Exma. Sra. Arquitecta Lara Abrantes? Espera lá… Será possível estar a acontecer-me isto? Estou a ficar emocionado! Eu nunca me conformei de não ter cumprido a minha missão… vou esperar pacientemente, só espero não ser tarde demais de novo… Que barulho é este? Alguém entrou em casa. Correio! Veja o correio! Não percebo, anda para dentro e para fora e nada de… Agora! O som da portinhola! Se ela não é quem eu penso, não sei que faça… Tanta luz! Estar na escuridão uma semana inteira, estou mesmo desabituado…! Ah!!! Estou em casa! Sou portador de boas novas! Sabe uma coisa? Esta é a melhor e mais gratificante finalidade para um postal… Então, então, então…?! Já parece o outro… Pare lá com os pingos! 



sábado, 27 de fevereiro de 2016

Escolhas

chuva? frio? neve...? hum hummm
Num final de semana como é este em que a expectativa é para que chova, faça frio, muito frio e até neve pelo país, na minha saída matinal para comprar pão quente, o S. Pedro generosamente presenteia-me com um lindo céu azul turquesa, tão do meu agrado, assim como um calorzinho de aquecer as bochechas e o coração.
Achei engraçado tirar foto de uma bonita amendoeira prematuramente em flor e colocá-la no facebook com um qualquer texto, talvez alusivo à bonita lenda da princesa oriunda do norte da Europa que casou com um rei mouro. Conta-se que sendo sensível à sua tristeza (pela saudade de avistar os campos cobertos de neve na sua terra), o marido mandou plantar amendoeiras a perder de vista nas terras algarvias ao redor do seu castelo, para que a sua bela e jovem mulher sorrisse ao avistar, pelo início da Primavera, uma paisagem branca. Mas o meu apelo era o céu limpo de riscos deixados pelos aviões, num deslumbrante tom de azul profundo. A legenda que coloquei na foto correu em contraposição ao sentido que todos estavam a publicar nas redes sociais nesse momento: o frio gélido do vento, a chuva intensa, o granizo enorme, li que falavam de desconforto. Sim, estava mesmo muito frio, mas escolhi valorizar o fugaz momento feliz que o Sol abriu e brincar com o teor da legenda.
Em momento nenhum escrevi, publiquei ou comentei que esse instante se desvaneceu, acto contínuo, ainda esperava o pão quente sair, o céu fechou e no regresso a casa apanhei uma molha enorme. E sim, foi de novo uma escolha minha muito consciente.
Nas redes sociais cada um usa o seu livre arbítrio para publicar o que lhe aprouver. Todos o sabemos. Podemos achar louvável ou detestável o que o outro escolhe compartilhar. Podemos escolher ler, comentar, deixarmo-nos impregnar naquelas palavras ou voltarmo-nos para outras. Podemos pensar ser aquele o todo, quando apenas é a parte que foi escolhida para partilhar por um qualquer amigo virtual. Pensamos que tal afirmação pode ser real, fantasiosa, ou até despreocupadamente falsa, apesar da convicção do indivíduo ser legitimamente enraizada que está a fazer o correcto.
Cada um de nós escolhe o que quer mostrar de si, como quer mostrar, a quem quer mostrar. Podemos agitar bandeiras, defender causas, levantar a voz ou silenciar numa hibernação profunda. Podemos tanto, podemos tudo.
Ou podemos escolher desligar o wi-fi e simplesmente viver a vida real.


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