Hoje, e porque celebramos o dia 25 de Abril de 1974 e a liberdade que nos trouxe à nossa vida, apetece-me partilhar o início do meu novo livro, chamemos-lhe capítulo zero ou prólogo, porque descrevo justamente este dia e de como uma menina do liceu chamada Alice o percepcionou.
No dia 23 de Abril, dia do livro, deixei que os leitores espreitassem pelo buraco da fechadura, e lessem algumas palavras do começo do meu novo livro, e hoje, porque tenho a liberdade como autora de mostrar mais do que seria suposto ou politicamente aceitável ou até correcto, faço-o, apenas porque me apetece e celebrando a liberdade de o poder fazer.
Também porque ao descrever as emoções, sensações e pensamentos de uma menina do liceu, abro uma janela às novas gerações que nem conhecem a carismática pergunta de Baptista Bastos, criada numa personagem de Herman José que o retratava, no programa de humor em 1997, o Herman Enciclopédia:
Apeteceu-me começar este novo livro, respondendo a essa questão: onde Alice estava no 25 de Abril de 1974?
Pelo novo livro e sua história, os meus queridos leitores terão de esperar o seu momento.
Até breve!
Onde é que você estava no 25 de Abril?
Esta pergunta de Baptista Bastos (a personagem de Herman José) teve tanto impacto que o escritor, na vida real, acabou por fazer uma série de entrevistas em que colocava esta questão aos seus convidados. E a frase ficou. Hoje os jovens conhecem-na, mas não sabem esta origem. Tão pouco a perguntam, porque a resposta seria: "se nem era nascido..."
Apeteceu-me começar este novo livro, respondendo a essa questão: onde Alice estava no 25 de Abril de 1974?
Pelo novo livro e sua história, os meus queridos leitores terão de esperar o seu momento.
Até breve!
Prólogo
A Malta do Liceu
Alice
tinha quase 19 anos quando se deu o 25 de Abril de 1974 e lembrava-se
perfeitamente do local onde se encontrava, o que estava a fazer.
Naquela
madrugada o telefone ressoou pela casa adormecida. Alice prontamente saltou da
sua cama e correu para a saleta, rumo ao aparelho destemperado atendendo a chamada
telefónica, estranhando em primeiro lugar a hora matutina e depois o tom
sombrio, quase enigmático, com que o pai, uma vez chamado, respondia ao amigo
do outro lado do fio.
Nem
as meninas foram à escola - a mãe conduziu-as para os seus bordados - nem o pai
saiu para o emprego. Ficaram recolhidos naquela manhã a ouvir baixinho na
telefonia o que só mais tarde entenderia como o fim de uma era. Os quatro em
silêncio, apenas quebrado quando a sua irmã se picou ou com o continuado calcar
dos dentes paternos na ebonite da boquilha do seu cachimbo mordiscado.
Recordava-se
de outra curta ligação telefónica, do pai num breve movimento a fazer-lhe sinal
que se levantasse e fosse ligar de imediato o aparelho de televisão, de
esperarem, a contarem os segundos no relógio Omega que o ecrã do televisor
mostrava até aparecer a imagem do Fernando Balsinha, muito compenetrado do seu
papel de anunciar aos espectadores do seu país que, naquela tarde e a partir
daquele momento, a rede emissora da Rádio Televisão Portuguesa estava totalmente
controlada pelo Movimento das Forças Armadas.
Outra
chamada telefónica, de um tio a perguntar como estavam com a situação em
Lisboa, se estavam todos a salvo, que soube quando os cachopos foram ter com
ele ao trabalho e o alertaram, estavam normalmente na telescola e mandaram-nos para
casa, visto que a emissão fora tomada.
Alice
não se recorda muito bem do que o Fialho Gouveia leu na emissão especial do
telejornal, não entendeu porque proclamavam à nação o propósito de salvação do
país, ainda menos entendeu a necessidade de o libertar de um regime que há
longos anos o oprimia. Oprimia? Regime? Na verdade, Alice distraída do seu
bordado, fixou-se no diálogo que estranhou aos seus pais: a mãe a ordenar que
as meninas se recolhessem de imediato ao quarto, ainda no relógio Omega passavam
os segundos na imagem do televisor, e o pai a sobrepor a sua posição, afirmando
que deveriam ficar na sala. Alice não entendeu a mudança repentina: iam
permitir-se ter conversas de adultos frente às duas filhas? Nunca o haviam
feito! Ficaram, mas desabituadas de tanta circunstância a que foram a vida
inteira protegidas, entreolhavam-se, não compreendiam o que eram os
acontecimentos revolucionários que os dois locutores liam uma e outra vez.
Alice lembrava-se de reparar que estariam algo nervosos, enquanto Fernando
Balsinha lia as notícias, Fialho Gouveia fumava ininterruptamente.
No final,
Alice recordava-se, para além da Sinfonia nº 3 de Beethoven, que reteve daquelas
horas iniciais um nervosismo desconhecido, tanto em casa observando os pais
como percepcionando-o nos locutores, e de que esse estado de espírito ter ido
dando lugar a uma felicidade que não teve capacidade de assimilar qual a sua
origem mas que com facilidade se deixou contagiar.
Recordava
a estranheza que sentiu quando o pai, contrariando o aviso que os locutores
repetiam, saiu para a rua, admirou-se que a senhora sua mãe cantarolasse “E
depois do Adeus” do Paulo de Carvalho, cantor pelo qual em casa não nutriam
particular simpatia, que o Fialho Gouveia largasse o cigarro e a cada
actualização que lhe entregavam, lesse com maior enfâse, até ao empolgamento final
com que agradeceu a fineza de trato que o movimento cuidou ter para com todos,
desde o primeiro momento que ocupou a estação televisiva.
Recordava-se
exactamente da cor que trabalhava no bordado que fazia naquele dia 25 de Abril,
mais pela peculiaridade do dia do que pelo seu significado já que a sua
ingenuidade não a deixava entender.
Da candura
e estranheza, a deixar-se mergulhar na nova época que esse dia anunciou, foi uma
mudança demasiado rápida e fácil: ninguém a preparou para a abrupta passagem da
rigidez na educação paterna e absolutas regras escolares darem lugar a uma
quase vulgaridade de normas valores e costumes que, dançando e cantando, de
braço no ar revolucionando o que nem compreendia, embarcou.
Alice,
mais afoita que a comedida irmã, queria experimentar, tomar o pulso a tudo,
receosa que a liberdade tivesse chegado com breve prazo de validade e tivesse
de voltar ao recato do seu bordado.
No
liceu havia muitas reuniões gerais de alunos, as R.G.A., que foram ganhando
notoriedade entre a população estudantil, foi havendo mais movimentações
politizadas e consequentemente quebras na rotina, muitos momentos sem aulas e
essa ociosidade foi uma das novidades que mais a atraía. Reuniam-se na
pastelaria à frente do liceu, amiúde começou a beber café e, mais por osmose
que por convicção, também a fumar como os colegas. Daí foi alargando as saídas
do liceu em horário escolar que cada vez era mais caótico, primeiro para os
passeios em grupo pela avenida da Igreja, com as obrigatórias idas aos gelados
Itália, depois para o jardim do Campo Grande andarem de barco a remos com os irmãos
das colegas, também desocupados, e nos dias quentes todos juntos em grandes
grupos para as praias da linha do Estoril, faltando deliberadamente às aulas
seguintes.
As
saídas nocturas surgiram naturalmente com a nova vaga educacional que os pais
queriam acompanhar: permitiam-nas desde que as duas filhas fossem juntas. Embora
a irmã preferisse ambientes mais reservados, acompanhava Alice levando consigo
um livro e distanciava-se das escolhas cada vez mais audazes que via a irmã
fazer. Rapazes, drogas, álcool.
Um
final de tarde na Marginal teve um desfecho inesperado.
Vinham
de mais um ensolarado dia de praia daquele Verão quente.
A irmã
viu Alice, que ia à pendura na Zundapp
amarela à frente do Mehari onde
seguia, ser projectada após um embate palerma com um DS. O rapaz que ia ao volante já havia comentado que o colega não
deveria estar a conduzir depois do que tinha consumido, ainda para mais de duas
rodas. Quem é que não vê um boca de sapo aproximar? Aconteceu. Pararam,
socorreram, esperaram a ambulância, seguiram até ao hospital, esperaram. Alice
pediu à irmã segredo, nada contarem aos pais.
O que
Alice não esperava era que o segredo fosse maior que ela.
Nem à
irmã contou.
Uma
médica abeirou-se inquirindo:
-
Quem a está a acompanhar?
- A
minha irmã.
- A
senhora deseja que mande chamar o seu marido?
-
Marido? Eu sou solteira.
- Compreendo,
menina então. Lamento profundamente, mas devo informá-la que perdeu os seus bebés.
- Que
bebés? Do que fala?
- A
menina não tinha conhecimento do seu estado?
- Que
estado, senhora doutora?
-
Devo chamar a sua irmã?
- De
maneira nenhuma! Explique só a mim, de que fala? Eu estou grávida??
-
Estava.
-
Gémeos…? Grávida, eu??
-
Sim. Dois meninos. Lamento informá-la assim nestas condições.
A
médica sentou-se na beirada da cama e segurou-lhe a mão. Alice respirou fundo e
levantou o olhar:
-
Doutora… não chame a minha irmã, por favor, não diga nada!
Alice
saiu do hospital em silêncio. A irmã e os colegas felicitavam-na, que sorte
tivera por escapar só com arranhões, o amigo deles tinha a perna partida e o
condutor do boca de sapo ficara internado em observação.
Sim,
que sorte.
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