Apeteceu-me revisitar este conto do meu livro MAL ME QUERO após ter prestado declarações na esquadra [de violência doméstica] e ter de dolorosamente recordar 9 anos (sim, nove) de situações delicadas (chamemos-lhe assim para não dizer vida/morte) com o meu filho Pedro.
Ter de relembrar e relatar alguns episódios, foi duro. A alma humana é tão generosa ao colocar num cantinho escuro o que não quer voltar a pensar. Recordei este meu livro, escrito antes de toda esta fase acontecer, e que já pronto, resolvi acrescentar esta história. Não é segredo para ninguém que neste conto me inspirei em momentos limite que vivi ao volante do meu pobre carro com o meu filho ao lado a tentar que nos acidentássemos. A realidade superou o que decidi (com)partilhar para as personagens. Já o sentir, esse é muito meu. Pensei que o cantinho escuro me tinha protegido de recordar esses momentos. Mas estão cá.
Mais uma vez apelo, a quem de direito, para que olhe para estas realidades caladas e haja ajuda a estas famílias, muitas vezes contrariamente a mim silenciadas no seu pedido de socorro.
Ter de relembrar e relatar alguns episódios, foi duro. A alma humana é tão generosa ao colocar num cantinho escuro o que não quer voltar a pensar. Recordei este meu livro, escrito antes de toda esta fase acontecer, e que já pronto, resolvi acrescentar esta história. Não é segredo para ninguém que neste conto me inspirei em momentos limite que vivi ao volante do meu pobre carro com o meu filho ao lado a tentar que nos acidentássemos. A realidade superou o que decidi (com)partilhar para as personagens. Já o sentir, esse é muito meu. Pensei que o cantinho escuro me tinha protegido de recordar esses momentos. Mas estão cá.
Mais uma vez apelo, a quem de direito, para que olhe para estas realidades caladas e haja ajuda a estas famílias, muitas vezes contrariamente a mim silenciadas no seu pedido de socorro.
LUTO EM VIDA
onde se conseguiam contar os 5 pontos sob o penso transparente. Andava a pensar usar franja depois da ferida sarar, ia ficar feio, apesar de todos os amigos a tentarem animar que ia ficar com muito charme.
Quem não estava nada satisfeita era a sua avó Rosalinda, todos os dias lhe pedia para largar aquele emprego, que podia ganhar a vida sem se expor a ser maltratada daquela forma, mas a avó não podia entender que aquele trabalho era muito mais do que ganhar dinheiro para pagar as propinas, o carinho que ganhara a Miguel não tinha fim: era o seu amigo das manhãs! Muito encorpado, com os movimentos tolhidos pela forte medicação que tomava, por vezes não sustinha um fio de baba que vagarosamente escorria para a roupa, sempre alinhada. Fugia frequentemente ao contacto físico e, com o olhar ausente, ficava sentado perto da janela parecendo ver as pessoas na avenida movimentada.
A tarefa de Mónica consistia em ajudá-lo nas tarefas básicas e diárias desde o levantar, a higiene pessoal, preparação do pequeno-almoço e acompanhamento durante a manhã. Era substituída pelo João ao meio-dia. À tarde entrava o Paulo. Eram, ao todo, três estudantes que acompanhavam os dias de Miguel enquanto os pais trabalhavam.
Zé Miguel e Marta adiaram, durante muitos anos, a hora de se tornarem pais, sendo os dois sócios num escritório de advogados, quando finalmente decidiram ficar grávidos, foi uma alegria. Os médicos nunca souberam diagnosticar o que acontecera, Miguelinho era um lindo bebé, simplesmente diferente, mas, aqueles pais, amaram-no incondicionalmente. Refizeram a sua vida em torno do menino e, à vez, iam ficando em casa com Miguel para o acompanharem. Nunca consideraram a hipótese de o internar, adoravam o seu bebé. Com o passar dos anos, foi-se tornando mais complicado e a integração do Miguel na escola foi um drama, ainda assim, lutaram pelo direito que o filho tinha de pertencer a uma escola que se dizia inclusiva e por serem bastante influentes, articulados e, sobretudo, determinados, foram sustentando uma situação com contornos insustentáveis.
Miguel cresceu, era um bebé grande com corpo de homem, muito pesado e descoordenado, mas estes pais continuavam a tratá-lo, a mimá-lo e a conduzi-lo a todas as terapias que poderiam ajudar aquele filho querido. No último ano, foi particularmente difícil quando a escola o resolveu excluir por faltas. Foi uma grande partida da direcção da escola, no sentido em que Miguel estava ao abrigo do artigo 319 * e ainda estava na idade adequada para a frequentar. Realmente faltou um mês em que esteve mais agitado, mas havia um atestado médico e, principalmente porque essa expulsão aconteceu no exacto dia em que, em conversa com a professora de ensino especial, a mãe perguntou como seria no ano seguinte, tendo em conta que a lei tinha mudado e a obrigatoriedade passara dos 16 para os 18 anos. Solícita, a professora imediatamente se encarregou de ir perguntar à direcção da escola... nesse mesmo dia receberam o telefonema com o cortante recado que Miguel estava, a partir desse dia, excluído por faltas.
Sendo os pais juristas sabiam exactamente como levantar o dedo contra o sistema abusivo, mas estando genuinamente cansados desta luta inglória, primeiramente pensaram no Miguel e no seu bem-estar.
Apesar de naturalmente envelhecidos, apesar dos rompantes violentos do Miguel sobre ambos, com especial incidência sobre a mãe, tomaram a decisão de não o internar, ao invés, criaram infra-estruturas em casa, em torno da família, como que uma rede de ajudas que tinham capacidade financeira para pagar, para que Miguel não perdesse as suas referências: Distribuídos por turnos, tinham sempre jovens em casa, geralmente estudantes, para aliviar os pais das tarefas cada vez mais difíceis – dar o banho da noite ou ajudar a vestir e na alimentação – devido ao torpor, ao peso, à descoordenação e à rigidez na locomoção, natural da forte medicação. Ao fim de algum tempo e evidenciado o total desprendimento por Miguel, Marta e Zé Miguel trocavam com frequência a equipa sem que o filho demonstrasse o menor sinal de perturbação.
Até Mónica entrar.
Não se limitava a vesti-lo e dar-lhe de comida. Insistia em falar-lhe sobre todos os assuntos como se Miguel fosse um grande amigo e em algum momento mágico pudesse entender e responder-lhe.
Sem grande espanto, Miguel afeiçoou-se a Mónica como a mais nenhum membro da equipa e os pais reconhecendo esse sinal de esperança, pediram um esforço aos outros elementos, que, de alguma forma, comunicassem com o Miguel, tentando assim encontrar uma luz. Com a chegada do final da adolescência, Miguel estava muito tempo desocupado, sem interesse em qualquer actividade, foi ficando sistematicamente mais inacessível e agressivo.
O único elemento que persistiu, em nunca abandonar aqueles pais dedicados, foi Mónica. Pequena e franzina, foram muitas as vezes que foi até ao hospital – costela partida com um encontrão, um dedo partido e outra vez ainda teve um sério traumatismo craniano.
Claro que batia à Mónica!, e a sua avó Rosalinda reclamava com toda a propriedade. Exasperada, Mónica justificava que era tão pouco o que a atingia, comparando com o que fazia à própria mãe, que inclusive a doutora já tinha tido problemas com a assistente social do hospital que, veladamente, a julgava, pensando ser o marido que espancava a senhora daquela forma. Mónica tentava explicar para que a avó Rosalinda entendesse a mentalidade das pessoas: Em lugar nenhum se acreditava que pudesse ser logo um filho deficiente, um coitadinho, a ser o agressor, que disparatado!, era a senhora a desculpabilizar o marido, só podia ser! Pois claro!, ainda por cima, ambos advogados!, pensam sempre que estão acima da lei!... É uma realidade: no geral, as pessoas apenas viam esta população portadora de deficiência como passíveis de serem vítimas de abuso dos familiares por serem uns alvos fáceis, jamais os agressores! Também é uma realidade que estas famílias abusadas protegem os seus bebés grandes e não contam o que se passa dentro de portas, seja por vergonha ou pela mentalidade do «coitadinho» que ainda grassa por aí; talvez, por isso, não constem das estatísticas de violência doméstica, nem tão pouco as autoridades tenham essa noção.
Sendo a violência doméstica agora um crime público, se um vizinho ligar para as autoridades, perturbado porque ouve reboliço no andar de cima, certamente vai achar que a família está a maltratar a pessoa deficiente e, uma vez com a autoridade à porta, a família encobre com receio do que possa acontecer ao seu ente tão querido. Não é fácil!
Querida avó Rosalinda, para si, as cifras poderão ser nulas ou pouco significativas... mas é como a história das bruxas, nós não acreditamos nelas, mas que as há... há!!!
Mónica continuava a contar que à doutora sim, Miguel atingia forte e feio, sem que se pudesse compreender o porquê, já que era, de todas as pessoas, a que ele mais venerava. Bastava a voz da mãe para Miguel ficar atento e quando entrava na mesma sala parecia esboçar algo parecido com um sorriso. Não era compreensível, mas era mais frequente demonstrar a sua agressividade com a mãe ou com Mónica, exactamente as duas pessoas com quem conseguia alguma débil forma de interacção. Ao longo dos anos Mónica tornou-se confidente da mãe do Miguel, portanto podia descrever à avó exactamente o que aqueles pais sentiam e sofriam por este filho. A avó Rosalinda não conseguia entender como era possível à neta amar uma pessoa que não respondia a um simples sorriso, não podia perceber a alegria de Mónica quando conseguiu que segurasse uma colher – e só o fazia quando comia iogurte de ananás – ou a forma irreflectida como chegava a casa com nódoas negras e dizia que não era nada, apenas porque a mãe tinha apanhado mais.
No mês de Janeiro do ano que Miguel faria 18 anos era necessário deslocarem-se até à Câmara Municipal para dar o nome dele para a tropa. O pai, mais racional, manteve-se na postura de que era uma simples formalidade, mas não era nada simples e transtornou muito a mãe. Então estes pais não podiam ser poupados a um procedimento despropositado que, a haver uma boa comunicação entre entidades, seria desnecessário?
Foi um dia complicado. Marta tinha de levar o Miguel para fazer análises e exames, o que se previa ser uma tarefa fácil, já que o filho gostava do ambiente movimentado do hospital, gostava genuinamente de lá estar. Perto das 9 horas, quando já iam para casa, indignada, ainda pensava na simples formalidade. Deu a volta à praceta e rumou em direcção à Câmara Municipal. Insistia em levar Miguel com ela para dar o nome para a tropa, para poder reclamar junto da instituição, tamanha cretinice.
Nunca lhe tinha acontecido guiar naquelas circunstâncias.
Mais tarde quando pensou, não sabia se teria sido por ter mudado o percurso que perturbou Miguel, se teria simplesmente visto algo que o aborrecera, se teria uma natural dor que não sabia exprimir: era sempre uma angústia tentar perceber o que acontecia ao filho com as súbitas mudanças de humores. Por uma questão de segurança, Marta trancava sempre a porta do Miguel à chave pela parte de fora, ele não suportava o cinto e Marta colocava-o no seu braço direito como se fosse uma alça de uma malinha de mão, porque tinha medo que pudesse saltar em andamento. Não costumava reagir muito, gostava de ser conduzido e apreciava o sol quente na cara, mas nesse dia, fosse porque razão fosse, começou a ficar muito agitado. Absolutamente diferente do comportamento habitual, mexia nos botões todos dos comandos, tentava atingir a manípulo e retirar a mudança ou atingir a chave, pensou Marta com algum espanto, seria para atirá-la pela janela...?, sim o seu dedo indicador esquerdo viajava em cima do botão de controle da janela dele, se assim fosse não a conseguiria abrir. Contudo, a Marta, faltava-lhe mãos para tanta coisa, porque dava jeito conseguir segurar o volante. Claro que ia mais devagar e com todos os sentidos bem alerta, coisa fácil quando se tem a adrenalina a disparar. Ligou os quatro piscas e foi a buzinar furando o trânsito, na medida do possível, mas apenas pôs Miguel mais violento. Naquele momento, só queria que algum diligente polícia a mandasse parar para lhe poder explicar a sua aflição e pedir escolta policial, mas só conseguiu uns olhares contrafeitos ou mordazes de outros condutores que não poderiam imaginar o drama que estava a atormentá-la. Marta encostou o carro o tempo suficiente para pôr o auricular e ligar para Zé Miguel, apesar de saber que àquela hora estaria no tribunal de telemóvel desligado. Arrancou e ligou de seguida para a Mónica. Por essa altura, Miguel já estava bastante colérico e estava a agredi-la. Mónica, ao telefone, perguntava onde estava, para permanecer parada, sair do carro deixá-lo trancado lá dentro... mas Marta só queria chegar a casa e acabar aquele pesadelo. Claro que parar não ia resolver a situação, Marta só queria chegar e acabar a viagem antes que ficasse pior, Mónica concordou. Ficou em linha a dar o apoio moral possível, sentia-se tão impotente!, todo o percurso com ele sempre a ficar mais agressivo, a cada movimento mais brusco, Marta neutralizava com o cotovelo ou com um ombro. A um Aiiii!, ou um NÃO!, de Marta, Mónica perguntava logo o que acontecera, mas Marta respondia apenas: superado. Houve uma altura que se riram porque ouviu-se estridentemente a buzina e Mónica, aflita, pensou que tivesse sido o Miguel, mas Marta confessou que era só um automobilista que queria passar-lhe e estava apenas a ser má ao volante, afinal até lhe estava tanto a apetecer descarregar em alguém!!! A certa altura estava a torcer os dedos de Miguel porque era a única forma de neutralizar as duas mãos e era uma luta renhida pela posse do poder de controlar a situação e se ele tem duas mãos grandes com muita força! Como Marta lhe estava a puxar os dedos para trás, de alguma forma estava a desarmá-lo, Ah!, sim!, era com essas três mãos enclavinhadas, a sua nas dele, que conseguia pôr as mudanças... As pessoas nos outros carros olhavam incrédulos a cena de quase pugilato, mas mais rápido que ajudá-la, julgavam-na: olhavam complacentemente para o pobre deficiente, coitadinho, que estava a ser agredido por aquela senhora má.
A chegada a casa foi já com contornos dramáticos, saiu logo do carro à procura de reforços – só Mónica, que estava à porta, de telemóvel, a reservar um lugar, não ia resultar – teve de vir um jovem vizinho retirá-lo do carro (isso então agora era prática corrente, todos os dias que tinham de sair com Miguel, na sua avenida, já perdera toda a vergonha e olhava em volta a ver a que vizinho solícito iria pedir ajuda).
Depois de o terem conseguido pôr no quarto a dormir, Marta, a quem Mónica dera um calmante, ainda demorou um bocado a descomprimir. Mónica lembrou-se de fazer um chá e convidar o simpático vizinho que não parecia estar com vontade de sair. Havia uma razão. Estiveram à conversa, o que se revelou bom porque a mãe de Miguel, mais relaxada com o efeito da medicação, pôde desabafar um bocado, afinal o vizinho era técnico especializado num Centro com jovens portadores de deficiência e, por conhecer bem demais esta realidade, estava a sugerir o melhor que tinham a fazer (interná-lo). Foi a primeira vez que Mónica viu Marta escutar o que o vizinho contava: talvez pela ressaca da descida da adrenalina, porque o comprimido e o chá a estavam a ajudar a relaxar ou, mais provavelmente, porque falava dos utentes do seu Centro com tanto carinho e dedicação. Deixou-lhes os contactos, disse que poderia explicar o teor do relacionamento com Mónica, que estavam na altura de entrar estagiários, poderiam ir juntos e, caso estivessem interessados, que fossem visitar as instalações. Depois, já mais calma, Marta saiu para ir trabalhar, sem conseguir deixar recado ao Zé Miguel. Parecendo adivinhar, no intervalo, Zé Miguel telefonou para saber como tinham corrido as coisas, parecia que tinham um chip não electrónico, mas sensorial instalado. Internar o Miguel? O desabafo foi brutal. Nunca! Era desistir dele enquanto filho, era fazer o luto em vida!!!
Zé Miguel e Marta sabiam que o curso de Mónica estava a terminar, a vida dela não seria só o Miguel, apesar de afirmar nunca o deixar, Marta bem vira como os olhos lhe brilharam com a possibilidade de estágio, ainda para mais se estivesse com Miguel. Com ou sem Miguel, aquela miúda doce estava a crescer, ia seguir o seu caminho, podiam perder o único elo de confiança que, à partida, poderiam ter numa instituição. Como incessantemente se enfadavam de ouvir de todas as pessoas que os rodeavam – porque não queriam ouvir –, eles não iam para novos, não iam cá estar para sempre com o seu bebé grande... que seria de Miguel se não fossem eles, os seus pais, a delinear, a acautelar atempadamente o seu futuro?
A avó Rosalinda ficou muito esperançada com o entusiasmo da neta. Percebeu que, ainda assim, só iria tentar aquele estágio se os senhores doutores lá colocassem o Miguel, mas já era um passo! A sua neta poderia continuar aquele estranho vínculo que, com os anos, aprendera a respeitar sem nunca ter conseguido compreender e adivinhava que aqueles pais tão extremosos deviam estar de coração partido para conseguirem tomar aquela decisão.
Quem não estava nada satisfeita era a sua avó Rosalinda, todos os dias lhe pedia para largar aquele emprego, que podia ganhar a vida sem se expor a ser maltratada daquela forma, mas a avó não podia entender que aquele trabalho era muito mais do que ganhar dinheiro para pagar as propinas, o carinho que ganhara a Miguel não tinha fim: era o seu amigo das manhãs! Muito encorpado, com os movimentos tolhidos pela forte medicação que tomava, por vezes não sustinha um fio de baba que vagarosamente escorria para a roupa, sempre alinhada. Fugia frequentemente ao contacto físico e, com o olhar ausente, ficava sentado perto da janela parecendo ver as pessoas na avenida movimentada.
A tarefa de Mónica consistia em ajudá-lo nas tarefas básicas e diárias desde o levantar, a higiene pessoal, preparação do pequeno-almoço e acompanhamento durante a manhã. Era substituída pelo João ao meio-dia. À tarde entrava o Paulo. Eram, ao todo, três estudantes que acompanhavam os dias de Miguel enquanto os pais trabalhavam.
Zé Miguel e Marta adiaram, durante muitos anos, a hora de se tornarem pais, sendo os dois sócios num escritório de advogados, quando finalmente decidiram ficar grávidos, foi uma alegria. Os médicos nunca souberam diagnosticar o que acontecera, Miguelinho era um lindo bebé, simplesmente diferente, mas, aqueles pais, amaram-no incondicionalmente. Refizeram a sua vida em torno do menino e, à vez, iam ficando em casa com Miguel para o acompanharem. Nunca consideraram a hipótese de o internar, adoravam o seu bebé. Com o passar dos anos, foi-se tornando mais complicado e a integração do Miguel na escola foi um drama, ainda assim, lutaram pelo direito que o filho tinha de pertencer a uma escola que se dizia inclusiva e por serem bastante influentes, articulados e, sobretudo, determinados, foram sustentando uma situação com contornos insustentáveis.
Miguel cresceu, era um bebé grande com corpo de homem, muito pesado e descoordenado, mas estes pais continuavam a tratá-lo, a mimá-lo e a conduzi-lo a todas as terapias que poderiam ajudar aquele filho querido. No último ano, foi particularmente difícil quando a escola o resolveu excluir por faltas. Foi uma grande partida da direcção da escola, no sentido em que Miguel estava ao abrigo do artigo 319 * e ainda estava na idade adequada para a frequentar. Realmente faltou um mês em que esteve mais agitado, mas havia um atestado médico e, principalmente porque essa expulsão aconteceu no exacto dia em que, em conversa com a professora de ensino especial, a mãe perguntou como seria no ano seguinte, tendo em conta que a lei tinha mudado e a obrigatoriedade passara dos 16 para os 18 anos. Solícita, a professora imediatamente se encarregou de ir perguntar à direcção da escola... nesse mesmo dia receberam o telefonema com o cortante recado que Miguel estava, a partir desse dia, excluído por faltas.
Sendo os pais juristas sabiam exactamente como levantar o dedo contra o sistema abusivo, mas estando genuinamente cansados desta luta inglória, primeiramente pensaram no Miguel e no seu bem-estar.
Apesar de naturalmente envelhecidos, apesar dos rompantes violentos do Miguel sobre ambos, com especial incidência sobre a mãe, tomaram a decisão de não o internar, ao invés, criaram infra-estruturas em casa, em torno da família, como que uma rede de ajudas que tinham capacidade financeira para pagar, para que Miguel não perdesse as suas referências: Distribuídos por turnos, tinham sempre jovens em casa, geralmente estudantes, para aliviar os pais das tarefas cada vez mais difíceis – dar o banho da noite ou ajudar a vestir e na alimentação – devido ao torpor, ao peso, à descoordenação e à rigidez na locomoção, natural da forte medicação. Ao fim de algum tempo e evidenciado o total desprendimento por Miguel, Marta e Zé Miguel trocavam com frequência a equipa sem que o filho demonstrasse o menor sinal de perturbação.
Até Mónica entrar.
Não se limitava a vesti-lo e dar-lhe de comida. Insistia em falar-lhe sobre todos os assuntos como se Miguel fosse um grande amigo e em algum momento mágico pudesse entender e responder-lhe.
Sem grande espanto, Miguel afeiçoou-se a Mónica como a mais nenhum membro da equipa e os pais reconhecendo esse sinal de esperança, pediram um esforço aos outros elementos, que, de alguma forma, comunicassem com o Miguel, tentando assim encontrar uma luz. Com a chegada do final da adolescência, Miguel estava muito tempo desocupado, sem interesse em qualquer actividade, foi ficando sistematicamente mais inacessível e agressivo.
O único elemento que persistiu, em nunca abandonar aqueles pais dedicados, foi Mónica. Pequena e franzina, foram muitas as vezes que foi até ao hospital – costela partida com um encontrão, um dedo partido e outra vez ainda teve um sério traumatismo craniano.
Claro que batia à Mónica!, e a sua avó Rosalinda reclamava com toda a propriedade. Exasperada, Mónica justificava que era tão pouco o que a atingia, comparando com o que fazia à própria mãe, que inclusive a doutora já tinha tido problemas com a assistente social do hospital que, veladamente, a julgava, pensando ser o marido que espancava a senhora daquela forma. Mónica tentava explicar para que a avó Rosalinda entendesse a mentalidade das pessoas: Em lugar nenhum se acreditava que pudesse ser logo um filho deficiente, um coitadinho, a ser o agressor, que disparatado!, era a senhora a desculpabilizar o marido, só podia ser! Pois claro!, ainda por cima, ambos advogados!, pensam sempre que estão acima da lei!... É uma realidade: no geral, as pessoas apenas viam esta população portadora de deficiência como passíveis de serem vítimas de abuso dos familiares por serem uns alvos fáceis, jamais os agressores! Também é uma realidade que estas famílias abusadas protegem os seus bebés grandes e não contam o que se passa dentro de portas, seja por vergonha ou pela mentalidade do «coitadinho» que ainda grassa por aí; talvez, por isso, não constem das estatísticas de violência doméstica, nem tão pouco as autoridades tenham essa noção.
Sendo a violência doméstica agora um crime público, se um vizinho ligar para as autoridades, perturbado porque ouve reboliço no andar de cima, certamente vai achar que a família está a maltratar a pessoa deficiente e, uma vez com a autoridade à porta, a família encobre com receio do que possa acontecer ao seu ente tão querido. Não é fácil!
Querida avó Rosalinda, para si, as cifras poderão ser nulas ou pouco significativas... mas é como a história das bruxas, nós não acreditamos nelas, mas que as há... há!!!
Mónica continuava a contar que à doutora sim, Miguel atingia forte e feio, sem que se pudesse compreender o porquê, já que era, de todas as pessoas, a que ele mais venerava. Bastava a voz da mãe para Miguel ficar atento e quando entrava na mesma sala parecia esboçar algo parecido com um sorriso. Não era compreensível, mas era mais frequente demonstrar a sua agressividade com a mãe ou com Mónica, exactamente as duas pessoas com quem conseguia alguma débil forma de interacção. Ao longo dos anos Mónica tornou-se confidente da mãe do Miguel, portanto podia descrever à avó exactamente o que aqueles pais sentiam e sofriam por este filho. A avó Rosalinda não conseguia entender como era possível à neta amar uma pessoa que não respondia a um simples sorriso, não podia perceber a alegria de Mónica quando conseguiu que segurasse uma colher – e só o fazia quando comia iogurte de ananás – ou a forma irreflectida como chegava a casa com nódoas negras e dizia que não era nada, apenas porque a mãe tinha apanhado mais.
No mês de Janeiro do ano que Miguel faria 18 anos era necessário deslocarem-se até à Câmara Municipal para dar o nome dele para a tropa. O pai, mais racional, manteve-se na postura de que era uma simples formalidade, mas não era nada simples e transtornou muito a mãe. Então estes pais não podiam ser poupados a um procedimento despropositado que, a haver uma boa comunicação entre entidades, seria desnecessário?
Foi um dia complicado. Marta tinha de levar o Miguel para fazer análises e exames, o que se previa ser uma tarefa fácil, já que o filho gostava do ambiente movimentado do hospital, gostava genuinamente de lá estar. Perto das 9 horas, quando já iam para casa, indignada, ainda pensava na simples formalidade. Deu a volta à praceta e rumou em direcção à Câmara Municipal. Insistia em levar Miguel com ela para dar o nome para a tropa, para poder reclamar junto da instituição, tamanha cretinice.
Nunca lhe tinha acontecido guiar naquelas circunstâncias.
Mais tarde quando pensou, não sabia se teria sido por ter mudado o percurso que perturbou Miguel, se teria simplesmente visto algo que o aborrecera, se teria uma natural dor que não sabia exprimir: era sempre uma angústia tentar perceber o que acontecia ao filho com as súbitas mudanças de humores. Por uma questão de segurança, Marta trancava sempre a porta do Miguel à chave pela parte de fora, ele não suportava o cinto e Marta colocava-o no seu braço direito como se fosse uma alça de uma malinha de mão, porque tinha medo que pudesse saltar em andamento. Não costumava reagir muito, gostava de ser conduzido e apreciava o sol quente na cara, mas nesse dia, fosse porque razão fosse, começou a ficar muito agitado. Absolutamente diferente do comportamento habitual, mexia nos botões todos dos comandos, tentava atingir a manípulo e retirar a mudança ou atingir a chave, pensou Marta com algum espanto, seria para atirá-la pela janela...?, sim o seu dedo indicador esquerdo viajava em cima do botão de controle da janela dele, se assim fosse não a conseguiria abrir. Contudo, a Marta, faltava-lhe mãos para tanta coisa, porque dava jeito conseguir segurar o volante. Claro que ia mais devagar e com todos os sentidos bem alerta, coisa fácil quando se tem a adrenalina a disparar. Ligou os quatro piscas e foi a buzinar furando o trânsito, na medida do possível, mas apenas pôs Miguel mais violento. Naquele momento, só queria que algum diligente polícia a mandasse parar para lhe poder explicar a sua aflição e pedir escolta policial, mas só conseguiu uns olhares contrafeitos ou mordazes de outros condutores que não poderiam imaginar o drama que estava a atormentá-la. Marta encostou o carro o tempo suficiente para pôr o auricular e ligar para Zé Miguel, apesar de saber que àquela hora estaria no tribunal de telemóvel desligado. Arrancou e ligou de seguida para a Mónica. Por essa altura, Miguel já estava bastante colérico e estava a agredi-la. Mónica, ao telefone, perguntava onde estava, para permanecer parada, sair do carro deixá-lo trancado lá dentro... mas Marta só queria chegar a casa e acabar aquele pesadelo. Claro que parar não ia resolver a situação, Marta só queria chegar e acabar a viagem antes que ficasse pior, Mónica concordou. Ficou em linha a dar o apoio moral possível, sentia-se tão impotente!, todo o percurso com ele sempre a ficar mais agressivo, a cada movimento mais brusco, Marta neutralizava com o cotovelo ou com um ombro. A um Aiiii!, ou um NÃO!, de Marta, Mónica perguntava logo o que acontecera, mas Marta respondia apenas: superado. Houve uma altura que se riram porque ouviu-se estridentemente a buzina e Mónica, aflita, pensou que tivesse sido o Miguel, mas Marta confessou que era só um automobilista que queria passar-lhe e estava apenas a ser má ao volante, afinal até lhe estava tanto a apetecer descarregar em alguém!!! A certa altura estava a torcer os dedos de Miguel porque era a única forma de neutralizar as duas mãos e era uma luta renhida pela posse do poder de controlar a situação e se ele tem duas mãos grandes com muita força! Como Marta lhe estava a puxar os dedos para trás, de alguma forma estava a desarmá-lo, Ah!, sim!, era com essas três mãos enclavinhadas, a sua nas dele, que conseguia pôr as mudanças... As pessoas nos outros carros olhavam incrédulos a cena de quase pugilato, mas mais rápido que ajudá-la, julgavam-na: olhavam complacentemente para o pobre deficiente, coitadinho, que estava a ser agredido por aquela senhora má.
A chegada a casa foi já com contornos dramáticos, saiu logo do carro à procura de reforços – só Mónica, que estava à porta, de telemóvel, a reservar um lugar, não ia resultar – teve de vir um jovem vizinho retirá-lo do carro (isso então agora era prática corrente, todos os dias que tinham de sair com Miguel, na sua avenida, já perdera toda a vergonha e olhava em volta a ver a que vizinho solícito iria pedir ajuda).
Depois de o terem conseguido pôr no quarto a dormir, Marta, a quem Mónica dera um calmante, ainda demorou um bocado a descomprimir. Mónica lembrou-se de fazer um chá e convidar o simpático vizinho que não parecia estar com vontade de sair. Havia uma razão. Estiveram à conversa, o que se revelou bom porque a mãe de Miguel, mais relaxada com o efeito da medicação, pôde desabafar um bocado, afinal o vizinho era técnico especializado num Centro com jovens portadores de deficiência e, por conhecer bem demais esta realidade, estava a sugerir o melhor que tinham a fazer (interná-lo). Foi a primeira vez que Mónica viu Marta escutar o que o vizinho contava: talvez pela ressaca da descida da adrenalina, porque o comprimido e o chá a estavam a ajudar a relaxar ou, mais provavelmente, porque falava dos utentes do seu Centro com tanto carinho e dedicação. Deixou-lhes os contactos, disse que poderia explicar o teor do relacionamento com Mónica, que estavam na altura de entrar estagiários, poderiam ir juntos e, caso estivessem interessados, que fossem visitar as instalações. Depois, já mais calma, Marta saiu para ir trabalhar, sem conseguir deixar recado ao Zé Miguel. Parecendo adivinhar, no intervalo, Zé Miguel telefonou para saber como tinham corrido as coisas, parecia que tinham um chip não electrónico, mas sensorial instalado. Internar o Miguel? O desabafo foi brutal. Nunca! Era desistir dele enquanto filho, era fazer o luto em vida!!!
Zé Miguel e Marta sabiam que o curso de Mónica estava a terminar, a vida dela não seria só o Miguel, apesar de afirmar nunca o deixar, Marta bem vira como os olhos lhe brilharam com a possibilidade de estágio, ainda para mais se estivesse com Miguel. Com ou sem Miguel, aquela miúda doce estava a crescer, ia seguir o seu caminho, podiam perder o único elo de confiança que, à partida, poderiam ter numa instituição. Como incessantemente se enfadavam de ouvir de todas as pessoas que os rodeavam – porque não queriam ouvir –, eles não iam para novos, não iam cá estar para sempre com o seu bebé grande... que seria de Miguel se não fossem eles, os seus pais, a delinear, a acautelar atempadamente o seu futuro?
A avó Rosalinda ficou muito esperançada com o entusiasmo da neta. Percebeu que, ainda assim, só iria tentar aquele estágio se os senhores doutores lá colocassem o Miguel, mas já era um passo! A sua neta poderia continuar aquele estranho vínculo que, com os anos, aprendera a respeitar sem nunca ter conseguido compreender e adivinhava que aqueles pais tão extremosos deviam estar de coração partido para conseguirem tomar aquela decisão.
------------
* -Decreto Lei 319/91, 23 de Agosto.
Define medidas de regime educativo especial a aplicar a alunos com Necessidades Educativas Especiais (N.E.E.), dos alunos do ensino básico e secundário.
1 comentário:
Parabéns pela sua escrita. Abraço
Enviar um comentário