quinta-feira, 1 de junho de 2023

Silly Season

 Quando disseram: "Ela mudou", estava apenas a evoluir. 

Quando disseram: "Está a isolar-se", estava somente a curar-se. 

Quando disseram: "Ela não tem importância", foi por essa altura que Ela encontrou a Paz em si. 




terça-feira, 25 de abril de 2023

Onde estavas no 25 de Abril de '74?

Neste dia de Liberdade, publico um excerto  do meu livro "Azul e branco às riscas", cujo título do Prólogo é:

A Malta do Liceu 

Lisboa, quinta-feira - 25 de Abril de 1974 - 07:00h 

Alice Vaz Guedes tinha quase 19 anos quando se deu o 25 de Abril de 1974 e lembrava-se perfeitamente do local onde se encontrava, o que estava a fazer. 
Naquela madrugada o telefone ressoou pela casa adormecida. Alice prontamente saltou da cama, correu para a sala rumo ao aparelho e atendeu a chamada telefónica, estranhando em primeiro lugar a hora matutina e depois o tom sombrio, quase enigmático, com que o pai, uma vez chamado, respondia ao amigo do outro lado do fio. 
Nem as meninas foram à escola - a mãe recomendou-lhes que estudassem - nem o pai saiu para o emprego. 
Ficaram recolhidos naquela manhã a ouvir baixinho na telefonia o que só mais tarde Alice entenderia como o fim de uma era. 
Os quatro em silêncio, apenas quebrado quando a sua irmã afiou o lápis ou com o continuado calcar dos dentes paternos na ebonite da boquilha do seu cachimbo mordiscado. 
Recordava-se de outra curta ligação telefónica: do pai num breve movimento a fazer-lhe sinal para que se levantasse e fosse ligar de imediato o aparelho de televisão. 
De aguardarem. 
 Lembrava-se do tempo que esperaram e como contaram, segundo a segundo, no relógio Omega que o ecrã do televisor mostrava, até aparecer a imagem do Fernando Balsinha. Estava muito compenetrado no seu papel de anunciar aos telespectadores que, naquela tarde e a partir daquele momento, a rede emissora da Rádio Televisão Portuguesa estava totalmente controlada pelo Movimento das Forças Armadas. 
Outra chamada telefónica, agora de um tio a perguntar como estavam com a situação em Lisboa (se estavam todos a salvo) que soube quando os filhos foram ter com ele ao trabalho e o alertaram. Os rapazes seguiam normalmente a telescola e mandaram-nos para casa, visto que a emissão fôra tomada pelo M.F.A. 
Alice não se recorda muito bem do que o Fialho Gouveia leu na emissão especial do telejornal; não entendeu porque proclamavam à nação o propósito de salvação do país e ainda menos entendeu a necessidade de o libertar de um regime que há longos anos o oprimia. Oprimia?… Regime?… A estranheza fez Alice distrair-se do estudo. Fixou-se no diálogo que se admirou ouvir dos seus pais: a mãe a ordenar que as meninas se recolhessem de imediato ao quarto - ainda no relógio Omega passavam os segundos na imagem do televisor - e o pai a sobrepor a sua opinião, afirmando que deveriam fica r na sala. Alice não entendeu a mudança repentina: iriam permitir-se ter conversas de adultos frente às duas gémeas? Nunca o haviam feito! 
Ficaram, entreolharam-se desabituadas de tanta circunstância de que foram a vida inteira protegidas, não compreendendo o que eram os acontecimentos revolucionários que os dois locutores liam uma e outra vez. Alice lembrava-se de reparar que estariam algo nervosos: enquanto Fernando Balsinha lia as notícias e Fialho Gouveia fumava ininterruptamente. 
No final, Alice recordava-se, para além do tom solene da Sinfonia nº 3 de Beethoven, que reteve daquelas horas iniciais um nervosismo desconhecido, tanto em casa observando os pais, como percepcionando-o nos locutores, de que esse estado de espírito foi dando lugar a uma felicidade que não teve capacidade de assimilar qual a sua origem, mas que com facilidade se deixou contagiar. 
Recordava a estranheza que sentiu quando o pai, contrariando o aviso que os locutores repetiam, saiu para a rua. 
Admirou-se que a mãe cantarolasse “E depois do Adeus” do Paulo de Carvalho, cantor pelo qual em casa não nutriam particular simpatia. Reparou no crescendo com que o Fialho Gouveia foi largando o cigarro a cada actualização que lhe entregavam, como as lia com maior ênfase e satisfação, até ao empolgamento final, com que agradeceu a fineza de trato que os militares do M.F.A. cuidaram ter para com todos, desde o primeiro momento que ocuparam a estação televisiva. 
Recordava-se exactamente do livro que estava a estudar naquele dia 25 de Abril, mais pela peculiaridade do dia do que pelo seu significado, já que a sua ingenuidade não a deixava entender. 

Da candura e estranheza, a deixar-se mergulhar na nova época que esse dia anunciou, foi uma mudança demasiado rápida e fácil. Ninguém a preparou para a abrupta passagem da rigidez na educação paterna e das austeras regras escolares, para uma quase vulgaridade nas normas, valores e costumes em que foi embarcando, dançando e cantando de braço no ar, revolucionando o que nem compreendia.
Alice, mais afoita que a comedida irmã, queria experimentar, tomar o pulso a tudo, receosa que a liberdade tivesse chegado com breve prazo de validade e tivesse de voltar ao recato do seu estudo. 




segunda-feira, 13 de março de 2023

Ana, porquê este livro novamente?

    E alguma vez saiu das nossas vidas? 
É uma resposta interessante, uma vez que, muito depois de estar esgotado, continuou a ser veementemente pedido – quase exigido!, – pelos leitores: foram os que emprestaram e não lhes foi devolvido, foram os que o queriam oferecer (à sogra, à madrinha, à professora, à terapeuta), de forma a “poder explicar o seu filho”, e, foram os que também queriam ler o livro pela primeira vez. 


    Deu-se um fenómeno aquando do lançamento em 2006 e ainda continua a ser um romance tão actual – Autista, quem…? Eu? – continua a ser verdadeiramente “um manual de boas-vindas ao autismo”. 
    Na releitura e revisão deste livro tomei a decisão de não mudar nada! O livro que ainda continua tão presente foi publicado em 2006, tal como as nomenclaturas que se usavam na época - Kanner, Asperger, def, criança 319 - que agora estão (estarão?) desactualizadas e/ou não são bem aceites socialmente. 
    
Na leitura deste livro, ficamos a saber de uma forma muito concreta a opinião que esta família tem acerca do chamado politicamente correcto…
 Nem sequer mudei detalhes que são tão despropositados agora, mas absolutamente adequados em 2006, como não ter rede de telemóvel no Metro ou a noção de que jamais se deveria comparecer a um jantar calçando sapatos de ténis. 
    Decidi igualmente utilizar o mesmo prefácio porque nenhum outro faria sentido! A Arq. Isabel Cottinelli Telmo é, para todos nós, uma voz que jamais será esquecida!, embaixadora do autismo pelo mundo afora, defendeu acerrimamente os direitos desta população como ninguém até então.
    A personagem/narrador Xavier, que nada sabe de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), vai tomar o leitor pela mão e, à justa medida que vai questionando e entendendo o Xico, vai acompanhar o leitor através do seu natural raciocínio na sua descoberta do autismo. 
    Mais do que tudo, com este livro, pretendi que o leitor compreendesse e aceitasse esta população desconcertante, quiçá validasse também o meu filho… Jamais poderia imaginar o público que atingiu e o impacto que teve em mim, autora, ter a real percepção de como toquei a vida de tantas pessoas – e, aparentemente, continuo a tocar. 
    Nasceu uma nova geração de crianças com autismo e, aos novos pais, este livro tem passado de mão em mão; foi-lhes emprestado e cobrada a devolução. Sei porque me contam. Esse ripple effect continua a chegar até mim que o percebo continuadamente através das redes sociais, por email ou mensagem. As histórias continuam a ser-me confiadas, desabafadas num impulso ou explanadas ao detalhe. A todos ouço e respondo. Eu? Já comecei esta minha difícil travessia da “porta da dor” há 33 anos. 
    Eu sei. Não há quem nos entenda, a não ser as famílias onde o autismo pousou.
    Sim, temos médicos e técnicos que nos são próximos e nos ajudam pela vida afora!, mas às 18h tiram a bata e por muito próximos que sejam… não sabem. E ainda bem que técnicos de saúde e os outros pais de meninos ditos normais não o sabem! 
    Não podem saber! A porta da dor está, felizmente, numa outra dimensão que só quem a passa, sabe até onde dói. Diria até à unha do dedo grande do pé, e isto sou eu, que tenho muita resistência ao embate da dor. Quem pode aferir a dor alheia…? 
    Porém, após a tempestade, dizem que sempre vem a bonança. E é de momentos felizes que também este livro é feito. 
    A forma absolutamente desconcertante como um filho com autismo vê e percepciona este planeta onde vivemos, tira-nos o fôlego – porque convenhamos – podemos amar um filho até à Lua e voltar, mas não o podemos pôr numa redoma à espera que um Universo perfeito apareça como por milagre, venha, e encaixe nas particularidades de cada um dos nossos filhos! Este é o Mundo que temos para lhes oferecer, podemos, isso sim, mudar a nossa própria percepção, do que nos rodeia e ter uma visão diferenciada da que sempre nos acostumámos. 
    Uma geração inteira nasceu entre a estreia deste livro e esta edição nova que vos apresento. Atravessemos esta dura porta da dor juntos. Porque 33 anos de mãe ensinaram-me muita coisa e a primeira que me ocorre, caro leitor, é que estamos nisto juntos – não está só. 






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