Um conto. Do meu livro MAL ME QUERO.
Já estou a pensar que este conto é o oficial do Dia dos Namorados :-)
É bem verdade e sabido que não tenho grande respeito por este tipo de comemoração. . .
Já irónico é este mês de Fevereiro os meus livros serem alvo de destaque nas montras, ladeando com as prendinhas de dia dos namorados... Quem diria que um destes 14 de Fevereiro eu seria tema de montra???
Amy Winehouse - Cupid
Dia-Oficial-do-Manel-levar-a-Maria-à-rua
Irene já se tinha esquecido, há muito tempo prometera a si própria que nunca mais sairia à noite num dia de namorados. Mas aconteceu. Com amigas, alheadas da comemoração, na sua nova "solteirice", combinaram ir todas ao jantar no japonês.
"Socorro! Saímos no Dia-Oficial-do-Manel-levar-a-Maria-à-rua!!!!" - Brincou.
Alguém sugeriu mudar de restaurante, mas não adiantaria àquela hora, sem marcação, estariam todos a transbordar de Manéis&Marias.
Antes, imagina-os:
Olhou à volta. Irene não tinha nada a opor ao amor ou a sua celebração, apenas o que chamava de “Dia Oficial”, uma representação patética do que deveria ser, por definição, celebrado todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.
O Manel pespega uma beijoca à sua Maria logo pela manhã antes de sair para o trabalho – ela falou tanto nisso na véspera, entre o intervalo do futebol e o creme de noite que ele teve pesadelos do mês sem sexo que, sabia, ela imporia, se ele ousasse esquecer...
A Maria, nesse dia sorri feliz, usa roupa nova, vai ao cabeleireiro – muita laca, muito caracol – compra um postal cor-de-rosa já preenchido, tipo-basta-assinar e uma prendinha bem fofinha para o seu Manel pôr no carro – coisa que ele jamais usará ao lado do galhardete do seu clube do coração...
O Manel, mais pragmático, compra o que ela discretamente lhe pediu durante a última semana toda, incluindo, a seguir à beijoca matinal sem sumo.
A Maria papagueia com as suas colegas de trabalho onde poderá ser levada mais logo a jantar. Todas graciosamente fazem crer umas às outras que não sabem o local e/ou a prenda.
O Manel, à tardinha, entre bejecas e tremoços, ri com os amigos que, este dia dos paleios cor-de-rosa, até foi uma coisa bem inventada: é uma noite que seguramente elas não irão passar a ferro até tarde, lhes doerá a cabeça ou terão o período...
A Maria já passou em casa da Mãe, depositando os filhos com um bem disposto: “Até amanhã!”
O Manel foi à florista.
A Maria chegou a casa mais cedo, tomou uma chuveirada e rapou os pêlos.
O Manel passou horas na fila da florista, rosnando.
A Maria passa o gloss mais uma vez pelos lábios ainda bonitos e com pouca procura.
O Manel chega a casa com um previsível ramo de rosas vermelhas, reclama por lhe ter custado 50 euros e, claro, «a» prenda.
Ouve-se na casa do Manel e da Maria uma palavra inusitada: Amo-te
Saem para a rua. Está tanto trânsito como de dia. Vão a um restaurante com folhas de papel branco por toalha.
O Manel pensa: “A TV desligada, que má sorte a minha, espero que alguém repare... se digo alguma coisa, lá se vai a queca.”
A Maria suspira: “Ele vestiu a camisa mais velha, logo hoje... qualquer dia rasgo-a e faço panos para os vidros.”
Irene respirou fundo e olhou em volta enquanto ainda esperavam mesa. Sentiu um ambiente dengoso nas mesas. Não se distinguia a música do ruído. Contrastava a elegância dos pratos deste espaço usualmente relaxante, seguro pela perplexidade serena dos empregados com o frenesim de tão inusitados clientes que até pediam, imagine-se... karaoke.
Irene lembrou-se daquela outra noite, não há tantos anos em que ficara inoculada da noite dos namorados. Presa num extraordinário trânsito para aquela hora tardia, olhou à sua volta: Estupefacta, viu o Manel ao volante com a Maria ao lado em todos os carros! Havia a versão casados-há-muitos-anos visivelmente enfadados pela demora e os namoradinhos que ainda disfarçam hostilidades cortesmente. Olhara para o João, o seu marido, para o seu olhar vazio esperando que o trânsito fluísse. Sentiu um arrepio: era apenas mais um Manel, o que, lamentavelmente, fazia dela mais uma Maria.
Decidida a que o Manel e a Maria não lhe estragariam mais nenhuma noite, olhou de novo à volta, desta vez com a sua firmeza acutilante.
O frete.
Estavam todos a fazer frete! Tinham saído à rua somente porque tinham de fazê-lo!... Todos sorriam complacentemente enquanto gramavam polidamente a estopada.
Todos não.
De indicador em riste anunciou, peremptoriamente, às suas amigas cansadas de estar em pé:
“O único casal a sério nesta sala, é aquele ali do canto.”
“Como sabes?” Perguntara a Bárbara.
“Sei. Sinto. São os únicos que estão a conversar.” Argumentou encolhendo os ombros.
Contrapuseram, estando num restaurante repleto de sons estridentes, com outros pares que tagarelavam demasiado alto.
“Estão apenas a falar. Reparem no olhar, estão apenas a falar, não estão a conversar.”
“Na mesa mesmo atrás de nós estão os piores espécimes de Manéis&Marias – sussurrou rindo a Maria Clara enquanto se sentavam – os broncos!
Olhavam causticamente para trás. Versão cromanhon-namoradinhos, diziam à socapa. Tinham de estar dois pares à mesa! Claro!... aos pares, se não, com quem é que eles haveriam de conversar???
Sem estranheza, Irene ouviu um dos rapazes protestar bem alto, com os pauzinhos em riste, pedindo talheres de gente, o outro palerma reclamar do peixe estar mal passado, uma das Marias dizer que o gengibre eram «pétalas de flores comestíveis», que «tinha lido numa revista» até ao momento hilário em que um comeu de uma só vez o “pistachio”, urrou que nem um urso que o tinham enganado, parece que afinal picava... sem mencionar a boa parte da noite a ouvi-los contar anedotas pouco edificantes sobre mulheres... que apropriado! – pensou – mas o melhor ainda estava para vir. Quando entrou uma figura típica da noite, empunhando a habitual braçada de rosas, uma daquelas Marias deu uma valente murraça na mesa afiançando ferozmente:
Até os outros Manéis&Marias das demais mesas tiveram dificuldade de suster o riso... Resta acrescentar o que já todos sabíamos, se calhar, até ela: não a teve.
A pouco e pouco todos os Maneis e Marias foram saindo. Era noite de festa lá em casa ou no banco traseiro do carro! Há casais que são abusivos durante todo o ano, seja verbal, física ou psicologicamente, mas Deus os livre de não festejarem o dia dos namorados!
Ficaram embrenhadas na conversa boa e no último sake gelado, depois do ritual de sabores nipónicos numa refeição memorável onde, como manda a tradição, nem um único bago de arroz foi desperdiçado, quando o tema de início de conversa, voltou à baila: As únicas mesas ainda ocupadas, agora sim, naquele tranquilo e prazenteiro restaurante, eram apenas a das amigas e a do tal casal do canto.
Ficaram a reparar e comentar ostensivamente nos detalhes sem que nunca sequer dessem conta. Era a mulher que estava virada na direcção delas. Tal como as amigas, não tinha estreado roupa nova, não tinha ido ao cabeleireiro, não havia nenhuma rosa vermelha do ké-frô na mesa.
Irene entretanto contava uma situação que ouvira num supermercado na véspera. Estava no corredor dos desodorizantes quando tomou atenção numa frase: “Olha, não tenho ideia nenhuma, pode ser já isto? Ficava já despachada para amanhã.” Irene sorrira ao se aperceber que falavam da prenda para o Dia Oficial. Que romantismo!, claramente uma Maria! Continuando as suas compras, ficou com atenção ao diálogo: “...ou então, pode ser este perfume...?, é que nem sequer é caro!”
O grito masculino ecoou pelos corredores:
“N-Ã-Ã-Ã-O!!!!”
As pessoas, às compras, entreolharam-se, mas ninguém se pronunciou quando a discussão estalou. Num casamento, quem vai meter a colher? Irene também olhou por cima do ombro. Pensou que fossem mais velhos, mas era um casal muito novo, reconheceu a vergonha só no tremor do queixo daquela rapariga que continuava a dizer tontices com ar subserviente enquanto ele lhe virava as costas e a deixava a falar para as prateleiras.
Respeito. A ligeira diferenciação entre um casal e um Manel&Maria.
Quando saíram do restaurante, o casal da mesa do canto continuava a conversar. Nunca deram pelas outras pessoas que tanto os observaram.
Irene deu um último relance ao casal antes de sair.
Apeteceu-lhe, por um momento, que soubessem que eram o seu prémio casal da noite, afinal fizeram-na acreditar que não eram apenas os Manéis e as Marias que saltavam para fora de casa nesta noite... mas, sempre soube que casais como este, não celebra o seu Amor apenas porque algum grupo de comerciantes resolveu importar uma moda que nem é nossa para aumentar um pouco mais as vendas - criaram portanto este pomposo evento a comemorar – leia-se a comprar.
Sorriu ao casal da mesa do canto e pensou, apesar de ter escolhido o divórcio para si, viver a dois, vale realmente a pena - quando vale a pena, respirou fundo e imaginou todos os casais que sabem: alimentar o amor é uma tarefa diária, construtiva, constante... todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.
Podia estar sozinha nessa noite, poderia continuar sozinha na vida, mas Irene sorriu. Enquanto esperavam para pagar, abriu o seu Moleskine e escreveu:
“Há é uma forma diferente de ver e viver a vida, o que nos torna loucos aos olhos dos que levam uma vidinha triste e sem sabor. A nossa, sabe a morangos com chocolate, até, quem sabe, sake e wasabi, se e quando deixamos a parte picante entrar na nossa vida.”
“Há é uma forma diferente de ver e viver a vida, o que nos torna loucos aos olhos dos que levam uma vidinha triste e sem sabor. A nossa, sabe a morangos com chocolate, até, quem sabe, sake e wasabi, se e quando deixamos a parte picante entrar na nossa vida.”