Agora Ele. Depois de Sexta-feira sobre a personagem "Anita", hoje Sábado vamos falar dele. A personagem sem nome, porque assim o decidi.
Love - Art of Noise
E na realidade parece-me fácil entender o porquê: se na parte do livro 'biografizável' existe alguém que à autora não apeteceu dar-lhe cara, nome e o põe a morar num improvável nenhures, é porque não pretende revelar a identidade da pessoa! Simples. Por isso, no livro, ele é sempre "Ele".
E se na personagem "Anita" eu enquanto autora tive de lidar com meus próprios limites, imaginem como encurtei as balizas para com alguém que não pretendi nunca 'biografizar' ou expôr. Antes brinquei com o esconder a verdadeira identidade. Até na personagem que apareceu no Facebook 'pedi emprestado' um olhar matreiro apenas porque consegui uma foto em que os olhos têm as duas cores necessárias à personagem. . . e ainda assim usei sempre a foto editada para nunca revelar a identidade.
Já para a gravação da voz da personagem quis um timbre quente porém forte, cativante no sonido de um sotaque que me encanta. Obrigada Joe Santos por dares a tua voz à personagem "Ele".
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ouvir aqui a personagem "Ele" na interpretação de Joe Santos
Segredo meu este, escrito a tinta permanente que subsiste arreigado, cravado debaixo da pele. É de sempre, é como o sinto. Quem o sabe, sempre o soube, acompanha-me na sombra adivinhada do meu silêncio. Eu assim o escolhi – não falar, não pensar, julguei que com o tempo, muito tempo, pararia de o sentir. Pero no. No silêncio cresceu puro e apropriou-se do voo alado da minha imaginação e vive, reinventa-se no campo solitário do meu agir interior.
Esta penosa sensação que me acompanha de ter sempre escolhido um outro caminho das melhores opções para a minha vida, advém de, naquela primeira grande encruzilhada, ter ido embora de Portugal quando deveria ter avançado sem medo ou hesitações no sentido de quem eu queria, quero: Ana. Três simples letras e encerram o meu segredo. Rendido, ajoelho-me sem acção junto da arca e desta vez sinto força para, ao levantar a tampa, a encarar:
Uma caixa azul de 30 por 40 em que confinei cartas, músicas, gestos, cheiros e emoções, calculei que era o que bastava. Pouso o cigarro no cinzeiro e, ao destapá-la, vem agarrada a vida que queria ter vivido. Segredo há muito adormecido, este meu, deixo escorregar o meu corpo encostado à parede, sentando-me, cruzo as pernas com vagar, pois tenho a caixa aberta no colo, vou tocando em cada momento guardado, acaricio contornos de memórias não esquecidas, acordo e recordo emoções, distanciado e esquecido do cigarro que lentamente se consome.
Segredo este meu, escondido há tanto, mas nunca olvidado. Se a buscasse agora ela… aún se acordaria de mi? Tomo o atado de envelopes na mão e encontro a letra bonita de Anita meio difusa. Aproximo-as do meu rosto, encosto ao nariz e inspiro. Se antes emanavam um perfume acitrinado, agora só me cheiram a papel envelhecido.
Parecerá uma história de amor desenganado no tempo e na vontade igual a tantas outras, mas não. Porque és la mia, un dulce amor, como canta Serrat na canção “Aquellas pequeñas cosas”,
«Uno se cree que las mató el tiempo y la ausencia.
Pero su tren vendió boleto de ida y vuelta.»
Volto a tentar focar-me na letra manuscrita tão minha conhecida. Pestanejo e afasto naturalmente o braço tentando ganhar campo de visão. Por Dios!, penso, é também nestas pequenas coisas que sinto como os anos passaram, começo a já não ver nada sem os óculos de perto! Levanto o olhar e não alcanço onde deixei os óculos.
Mergulho de novo na caixa. Por baixo das cartas e das cassetes com música, encontro fotos nossas, livros amarelecidos e procuro o manuscrito impresso em folhas A4. O primeiro livro que Anita escreveu – Evo – e nunca quis publicar, guardando-o para um dia mais tarde na sua vida. Mas quando o mais tarde não se torna demais? Porque a vida pode acabar-se num segundo sem ter tempo de preparar quem nos rodeia, sem ter tempo de sequer argumentar, Ah!! eu ainda quero mais um bocadinho para fazer tudo e tanto!
Não disse o que queria nem fiz o que preciso, urge ainda fazê-lo enquanto tenho tempo. Ainda terei tempo? Será o meu bilhete de ida e volta? Pensar que um dia o relógio vai parar deu-me uma premência de querer o tudo antes de a cortina descer, antes do tanto que persisto em alcançar – o todo que eu sei perdido algures no sempre. Quiero volver a leer. Quiero volver a…
Desassombradamente decido que este fim-de-semana vou embrenhar-me no livro! Deixo a caixa aberta no chão e num pulo levanto-me, pouso o manuscrito sobre a manta, e ainda antes de me esticar no sofá, agasalhado com a manta a tapar as pernas para começar a ler,
espalho algumas das nossas fotos que sei de cor na mesa e vou em busca de uma garrafa de água e dos óculos, por Dios!, mis gafas!, ...mis gafas, nunca me acuerdo donde las he dejado!!!! É que já não consigo ler sem eles…!
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