O Pedro votou. Tranquilo. Já sem o desassossego e novidade da primeira vez que o fez com receio que não o deixassem sem ter de fazer 'cara de não autista' para poder votar. O Pedro tem 21 anos. É autista até à quinta casa!, é e continuará a ser, uma vez que autismo não tem cura. Mas algo de muito importante mudou. O Pedro é hoje um adulto.
Ao reler o meu próprio relato do que aconteceu no dia que votou pela primeira vez, sorrio, com um sorriso ainda que triste, sabendo que me mantive firme e o Pedro continua sem ter o telemóvel dele.
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de 30 Setembro 2009
Mirrors – Sally Oldfield
Não é segredo.
O meu filho Pedro é um jovem de 20 anos com autismo.
Dos muitos sonhos que tem para uma normalidade perdida, o de votar era apenas mais um.
Hoje concretizou-o.
A imagem é bonita captada por uma mãe orgulhosa? Sim.
Mas nem todos os frames do nosso dia são partilháveis ou passíveis de o querer fazer. Reflecti se queria contar-vos este momento só nosso antes de o escrever. Sendo tão paradigmático, acaba por ser elucidativo desta estranha forma de viver «com autismo» e «com o autismo».
Cedo, mesmo antes dos 18 anos sabia o que queria: «Ser Natural», dizia com uma rara beleza. Aquela com que uma pessoa com autismo pode utilizar o mesmo léxico que todos nós temos à disposição, apenas acrescenta uma pitada de magia, de poesia que nunca nos cansa, nos deixa perplexos, por vezes comovidos, a nós, os a quem o «Ser Normal» nos chega como adquirido, sem sequer o questionarmos.
Apesar de saber o que queria, exactamente por o querer há tanto tempo, fica na sua mente um novelo muito complicado no modo de gerir as emoções.
Numa cabeça não-autista como a nossa, certificar-nos que saberia exactamente o significado de votar, ou se executava o acto com naturalidade, seria o básico.
Não para um autista.
À partida, não votam porque não entendem conceitos subjectivos. Convenhamos, muita da população dita normal não sabe porque vota, ou não o faz de uma forma tão consciente com que eu assisti a meu filho Pedro da responsabilidade todo o acto.
É uma realidade que o Pedro entende, há muito, conceitos e noções difíceis de serem entendidos por uma cabeça autista. Não sei explicar como, mas consegue. Tem opinião própria, argumentos válidos, e eu prometi-lhe nas últimas eleições que o iria ajudar a provar que poderia votar. O faz de conta de entrar na minha cabine e deixá-lo votar no meu boletim, na minha cruzinha, já não lhe chegava, até porque «a mãe vota errado» sim, ele tem opinião.
O Pedro na sua essência |
Todo o procedimento foi simples.
Deixei-o ir sozinho, ficando a observar da porta: com o número de eleitor fotografado no telemóvel, retirado do link da net, de B.I. e caneta na mão, sorriu-me confiante. Eu retribui num calado: “esvoaça, eu estou aqui atrás.”
Todo o procedimento seguiu tão alinhado e correcto, a dificuldade suprema de olhar firme nos olhos das pessoas na mesa de voto, mas saber dar a identificação, agradecer o boletim e piscar-me os olhos, num sorriso só nosso, antes de entrar na cabine de voto. Mas eis que já no finalzinho uma dúvida o atormenta e lhe desfaz o jogo do faz-de-conta-que-não-sou-autista (uma dúvida pertinente e de simples resolução, uma vez compreendida): dobrar duas vezes o boletim de voto ou dobrar em quatro? Ouviu as duas maneiras de dizer o mesmo, baralhou-o em quantas dobras havia de fazer e saiu da cabine meio acabrunhado de boletim dobrado ao meio para proteger a sua privacidade – “sim!, o voto, esse é secreto e o meu, ninguém vê” – e a uma simples frase da senhora que detinha o B.I. dele “dobra outra vez, Pedro” ele cumpriu na perfeição o seu serviço cívico, exerceu o seu direito ao voto. Não resisti a fotografar mais que mentalmente o momento kodak mais que perfeito e só nessa altura uma das senhoras da mesa olhou para mim enternecida e, momentaneamente, não sei se foi só uma troca de olhares entres mães babadas que se reconhecem, se de condescendência bacoca pelo jovem deficiente que até veio votar. Preferi escolher a primeira hipótese, a gastar energia com outra, e sorri-lhe em sinal de cumplicidade.
Em conversa com a Mina, mãe de um jovem com Asperger, que também hoje foi votar pela primeira vez, a percepção uma situação diferente. Ficamo-nos com o ponto de intersecção de ambos não saberem o mais fácil, num mero olhar distraído: dobrar um boletim de voto.
A cada esquina da minha vida de mãe vem aquela palavrinha – DESCONCERTANTE – com que escolhi definir o autismo. Não é, nunca vai ser fácil ajudá-lo a gerir a montanha russa constante de emoções que o assaltam e me avassalam por arrasto.
Pensar que num dia bom o iria fazer? Não. Mas o que é um dia bom? Pensei que o poderia fazer? Não nesse momento. Não me ocorreu. Teria impedido, teria evitado, teria…? Pois. Uma bola de cristal também não ajudaria. E se a minha avózinha não tivesse morrido, então… Ahhh! A imprevisibilidade faz parte da minha vida de mãe.
Atirou o telemóvel dele pela janela do 3º andar. Antes que pudesse reagir já o ouvia escaqueirar-se no chão da rua.
Verdade que vejo sempre o lado positivo. “Podia ter sido ele.” O que é um telemóvel? Um objecto, apenas. O Pedro desde sempre que ameaça que se atira pela janela. Este é um facto terrível com que vivo todos os dias da minha vida. Se sendo mãe, fiquei no ganho? Com certeza.
Quem não conhece o autismo tem uma pergunta enorme a brotar: Porquê? É simples. Autismo é um distúrbio de comportamento. Não sabem gerir as suas emoções, não da forma que nós consideramos normalizada. É um facto que ter sabido que poderia ir votar o lançou num turbilhão de sentimentos que não sabe onde os arrumar ou como os conduzir. Ser violento para com um objecto que adora, podendo ser esse os óculos de necessita, um telemóvel que quer ou a mãe que ama, é exactamente igual. É a forma momentânea de se libertar do excesso de stress que não sabe lidar. São «os malucos na cabeça» como com a sua liberdade poética tenta descrever e, acto contínuo, «a cabeça já está calma.»
Que fica muito oneroso repor os objectos? Sem dúvida. Neste caso específico, a minha resposta como mãe e educadora – porque tem capacidade de entendimento – não vou repor, não vai voltar a ter telemóvel. É elementar. Se o objecto ainda não caiu e ele já chora a sua perda, ele sabe, não o castigo – isso não resulta, antes o preço que terá de pagar pelo seu acto: não vai voltar a ter outro.
Acreditei sempre que a meu filho autista tenho de dar a mesma educação que daria se fosse… natural. Vinte anos depois não me digam que estava, estou errada.
Sendo este o lado negro, aquele que não se fala, se esconde, se esquece, há todo o lado bonito e compostinho. Ai que lindo!, o menino conseguiu votar…? Conseguiu sim. Mas quantas conversas tive com ele? As vezes que vimos telejornais juntos, o ouvi expressar-se em casos quentes nas notícias que dia após dia avançavam pela nossa casa dentro sem pedir licença e o vi formular a sua opinião, independente da minha – quantas vezes divergente e saudavelmente a discutíamos? Tempo perdido? Não. Tempo investido. Um autista tem este lado encantador que fomenta o mito urbano de que são seres iluminados e perfeitos. Não são. Como todas as pessoas, não existe só um lado bom ou só um lado mau. Num autista só se torna absolutamente desconcertante constatar que pode ter capacidades de saber fazer algo que uma pessoa “não-autista” nem atinge, mas a caminhar de mão dada com essa capacidade EXTRAORDINÁRIA estão as inapetências de algo tão linear e diverso como apertar sapatos, sorrir, olhar nos olhos do interlocutor ou a estranheza de não saber guardar a distância física considerada socialmente adequada entre pessoas.
Gosto de o ver crescer, de o saber capaz de momentos de naturalidade que o ajudo a valorar (que eu própria sorrio emocionada ao o ver atingir), para que entenda que «o ser normal» vai acontecendo dentro das capacidades e possibilidades de cada um. Mostro-lhe as falhas dos ditos normais, mostro-lhe os feitos dos seus pares. Recorro a exemplos simples (tenho uma lesão numa perna há 6 meses que me faz coxear com mais frequência que desejaria – não está nas minhas mãos o ficar bem – não posso correr, por vezes mal posso andar) e ele entende. Ao compreender, está a crescer. Não é mais o meu bebé, nem o meu menino. Tempo de o deixar ir. Voar, mesmo de asas presas. É um jovem adulto de 20 anos que vai sempre precisar de apoio para ser mais, mas para ser Pedro. E um Pedro feliz. Seja lá o que isso signifique.
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