quarta-feira, 4 de julho de 2012

Ler à lareira

Sabem como é? Ir no carro, de cabelos ao vento, à velocidade de mil pensamentos, embrenhados nos problemas do nosso corrido dia-a-dia e, num repente, a música que passa no rádio transporta-me ainda mais célere para um doce 'rincón' de minhas memórias, uma música dos anos setenta!... e é tão tão Evo!!!

Minnie Riperton - Loving you

Hoje deixo-vos com esta melodia inebriante e com um dos meus capítulos favoritos do livro Evo, «Sábado», o capítulo que «ELE» delicadamente diz tudo sem dizer nada

Sábado

«Jamás me perdonaré termos desencontrado as nossas vidas de forma tão leviana. Olho de relance as fotos sobre a mesa enquanto busco um cigarro no maço e parece-me que oiço Anita, a engraçadinha, que trocista sempre cantarolava baixando o tom e enrouquecendo a voz a tentar imitar Joaquín Sabina:

«Enciedo un cigarrillo y otro más
Un día de estos he de plantearme
Muy seriamente dejar de fumar»

Cresce-me uma raiva surda e amarga ao reler este princípio que podia não ter tido fim. Agimos de forma irreflectida connosco mesmos. Éramos muito novos, alegaria a Ana anos depois, fuimos unos gilipollas, era o que dizia, o que ainda digo.
Pero eso es el recuerdo que tengo hoy dia de aquel entonces.
Naquela altura era diferente. El deseo matava a minha segurança, parecia un virgencito disparatado, caramba!, nem sequer a enlacei e beijei uma única vez!!
E aquele sentir tan largo que me aquecia as entranhas e toldava as ideias, confundia-me tanto…
Afasto a manta de mim e levanto-me do sofá. Noite sem estrelas, logo hoje!, !!hace un tiempo de la hostia!! Agora apetecia-me tanto ficar unicamente a olhá-las… sempre o faço, ahhh! Anita tinha razão no que escrevera, não se enganara, sempre, mas sempre me lembro da nossa combinação, e mais!, eu não tinha a menor dúvida que ela faria igual, onde quer que estivesse, em que situação fosse... por toda a sua vida!
Ainda bem que fui trazendo lenha para dentro, com esta chuva traiçoeira agora estaria molhada. Imbuído nesta melancolia que me dói e conforta, só me apetece acender a lareira. Tantas recordações que me remetem à nossa vida. Anita sempre brincava comigo quando estávamos juntos à lareira chamando-me “peligroso pecaminoso”, fazendo um trocadilho engraçado com as palavras em espanhol pecoso (=sardento em português) e com o reflexo do fogo no meu cabelo ruivo (=pelirrojillo em espanhol).
Sento-me num toco de árvore que tenho como banco e ali fico, aparentemente entretido no torpor quente e ondulante das chamas. Atiro a ponta do cigarro para o lume e acicato o fogo crepitante que tranquilamente cuida que me aquece a alma enquanto me quedo perdido nos meus mais intensos pensamentos.
Eu gosto de ler, às vezes ando em mãos com um livro em espanhol, outro em português e outro em qualquer outro idioma, não é por avançar na leitura devagar que estou a demorar tanto neste… afinal quem não passou já tardes ou dias inteiros delante de un libro, com o cabelo sobre o rosto, com os olhos a doer do esforço continuado, sem conseguir parar de ler, leyendo y leyendo, esquecido da vida, do mundo, sem se dar conta que tem fome ou que arrefeceu e está com os pés gelados? Eu, por pura precaução, se leio tapo-me logo com a minha manta porque sei que me alheio por completo. Mas este livro da Ana, ¡por Dios!, é mágico, envolve-me, transporta-me para as nossas vidas, as que não vivemos como desejaríamos. Faço, sem me dar conta, pausas intermináveis a meditar. Nuestras vidas! Podíamos ter casado, ter tido filhos juntos, ter formado uma família unida e ditosa, porque pais que se amam criam filhos mais felizes, com uma base sólida que lhes servirá em adultos também para serem melhores pais, sempre pensei assim.
Acredito que este mundo precisa de pessoas assim, melhores, equilibradas e bem formadas, na verdade são as que naturalmente se reúnem no decorrer de suas vidas – ou como a Anita, com graciosidade, chamava aos amigos mais chegados, «a sua tribo» – como se as pessoas se reconhecessem como seres iguais e naturalmente se congregassem com um vínculo criado naturalmente a que chamamos amizade.
Os meus amigos de sempre, os que sabiam este meu segredo e sempre souberam da Ana, às vezes quebravam o silêncio sobre este tema para me dizer: Não penses mais nisso! Segue em frente! Por esta altura poderiam estar já divorciados, podias não ter sido feliz com ela, como o vais saber? Pois não o vou saber, porque nuestras vidas, apesar do paralelismo que sempre nos guiou, somos – fomos – como os carris de uma linha de comboio: eternamente ao lado uma da outra, seguem em frente mas nunca se unindo.
A Ana era eu sem o ser, e vendo-me numa outra pessoa como eu era, sou, inebriava-me na sua beleza e candura, encantava-me na sua bravura e inteligência e deixava-me transportar numa imensidão de palavras que calavam um silêncio que nunca deveríamos ter deixado instalar.
Sinto o espírito esvaziado, mas a cara quente e os olhos a picarem do calor emanado.
Ao contrário de Ana, soube que nunca iria ser amado assim, que nunca mais iria amar tão intensamente.»


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