terça-feira, 19 de março de 2024

O dia que me foi oferecido

O Pedro e eu somos família monoparental.
Hoje, logo hoje, quero contar-vos sobre um bonito momento nosso:

Habituei-me à narrativa de que, nesse fim de Agosto, no afã de uma gravidez complicada e num parto quase mortal para ambos, o cirurgião chefe (que nos salvou), no afã da confusão que foi aquela complexa cirurgia, se esqueceu de cortar a cordão umbilical, e eu, ao longo destes quase 35 anos, nunca tive em mãos o instrumento nem a vontade.  
com cinco anos
Sempre proibi ferozmente, desde tenra idade, a quem quer que fosse, de proferir palavras menos elogiosas acerca do progenitor, estando o Pedro presente. 
Não é correcto, não há necessidade e não acho justo para com uma criança. 




A vida encarregar-se-ia, com o tempo e a maturidade que viesse a adquirir, de poder formar a sua opinião. 

Num dia 19 de Março, teria o Pedro oito ou nove anos, depois de trabalhar, fui buscá-lo ao ATL. Trazia um presente na mão que insistiu em dar-me. 
Estavam dois homens, pais supus, à espera dos seus rebentos. 
com nove anos
Senti o olhar, aquele de esguelha, o que de tanto nos mirarem, nunca nos iremos habituar enquanto vivermos. 
O Pedro insistia em dar-me o presente, e eu, estupidamente, senti-me julgada por aqueles dois homens. Acto-contínuo, começo a justificar o meu filho em automático, perante aquele olhar (e se eu já sabia rosnar...), pondo-me a explicar ao Pedro que era dia do Pai, que o dia da Mâe... 
Nesse momento, o Pedro interrompe-me, com um tom de voz agastado, até algo irónico: "Bem sei!, primeiro domingo de Maio, blá, blá, blá..." 
"Ouve-me", disse.
Puxou-me pelas abas do meu casaco, forçando-me a baixar até à altura dele e me poder olhar bem nos olhos. 
Sim, algo atípico. 
Ganhou, como queria, todo o meu tempo.
"Quero que me oiças com atenção."
Beijou-me na bochecha: "Deste lado és Mãe," 
Beijou do outro lado: "Deste lado és Pai! Eu quero que este presente seja mesmo para ti e não fique guardado num gaveta até ao meu aniversário ou ao Natal." 
com 16 anos

Abracei-o, num dos nossos abraços infinitos. 

Notei num breve relance, sobre o ombro do meu filho e vi os olhares emocionados dos outros pais. 



É. 
O Pedro ofereceu-me o Dia do Pai. 



quinta-feira, 1 de junho de 2023

Silly Season

 Quando disseram: "Ela mudou", estava apenas a evoluir. 

Quando disseram: "Está a isolar-se", estava somente a curar-se. 

Quando disseram: "Ela não tem importância", foi por essa altura que Ela encontrou a Paz em si. 




terça-feira, 25 de abril de 2023

Onde estavas no 25 de Abril de '74?

Neste dia de Liberdade, publico um excerto  do meu livro "Azul e branco às riscas", cujo título do Prólogo é:

A Malta do Liceu 

Lisboa, quinta-feira - 25 de Abril de 1974 - 07:00h 

Alice Vaz Guedes tinha quase 19 anos quando se deu o 25 de Abril de 1974 e lembrava-se perfeitamente do local onde se encontrava, o que estava a fazer. 
Naquela madrugada o telefone ressoou pela casa adormecida. Alice prontamente saltou da cama, correu para a sala rumo ao aparelho e atendeu a chamada telefónica, estranhando em primeiro lugar a hora matutina e depois o tom sombrio, quase enigmático, com que o pai, uma vez chamado, respondia ao amigo do outro lado do fio. 
Nem as meninas foram à escola - a mãe recomendou-lhes que estudassem - nem o pai saiu para o emprego. 
Ficaram recolhidos naquela manhã a ouvir baixinho na telefonia o que só mais tarde Alice entenderia como o fim de uma era. 
Os quatro em silêncio, apenas quebrado quando a sua irmã afiou o lápis ou com o continuado calcar dos dentes paternos na ebonite da boquilha do seu cachimbo mordiscado. 
Recordava-se de outra curta ligação telefónica: do pai num breve movimento a fazer-lhe sinal para que se levantasse e fosse ligar de imediato o aparelho de televisão. 
De aguardarem. 
 Lembrava-se do tempo que esperaram e como contaram, segundo a segundo, no relógio Omega que o ecrã do televisor mostrava, até aparecer a imagem do Fernando Balsinha. Estava muito compenetrado no seu papel de anunciar aos telespectadores que, naquela tarde e a partir daquele momento, a rede emissora da Rádio Televisão Portuguesa estava totalmente controlada pelo Movimento das Forças Armadas. 
Outra chamada telefónica, agora de um tio a perguntar como estavam com a situação em Lisboa (se estavam todos a salvo) que soube quando os filhos foram ter com ele ao trabalho e o alertaram. Os rapazes seguiam normalmente a telescola e mandaram-nos para casa, visto que a emissão fôra tomada pelo M.F.A. 
Alice não se recorda muito bem do que o Fialho Gouveia leu na emissão especial do telejornal; não entendeu porque proclamavam à nação o propósito de salvação do país e ainda menos entendeu a necessidade de o libertar de um regime que há longos anos o oprimia. Oprimia?… Regime?… A estranheza fez Alice distrair-se do estudo. Fixou-se no diálogo que se admirou ouvir dos seus pais: a mãe a ordenar que as meninas se recolhessem de imediato ao quarto - ainda no relógio Omega passavam os segundos na imagem do televisor - e o pai a sobrepor a sua opinião, afirmando que deveriam fica r na sala. Alice não entendeu a mudança repentina: iriam permitir-se ter conversas de adultos frente às duas gémeas? Nunca o haviam feito! 
Ficaram, entreolharam-se desabituadas de tanta circunstância de que foram a vida inteira protegidas, não compreendendo o que eram os acontecimentos revolucionários que os dois locutores liam uma e outra vez. Alice lembrava-se de reparar que estariam algo nervosos: enquanto Fernando Balsinha lia as notícias e Fialho Gouveia fumava ininterruptamente. 
No final, Alice recordava-se, para além do tom solene da Sinfonia nº 3 de Beethoven, que reteve daquelas horas iniciais um nervosismo desconhecido, tanto em casa observando os pais, como percepcionando-o nos locutores, de que esse estado de espírito foi dando lugar a uma felicidade que não teve capacidade de assimilar qual a sua origem, mas que com facilidade se deixou contagiar. 
Recordava a estranheza que sentiu quando o pai, contrariando o aviso que os locutores repetiam, saiu para a rua. 
Admirou-se que a mãe cantarolasse “E depois do Adeus” do Paulo de Carvalho, cantor pelo qual em casa não nutriam particular simpatia. Reparou no crescendo com que o Fialho Gouveia foi largando o cigarro a cada actualização que lhe entregavam, como as lia com maior ênfase e satisfação, até ao empolgamento final, com que agradeceu a fineza de trato que os militares do M.F.A. cuidaram ter para com todos, desde o primeiro momento que ocuparam a estação televisiva. 
Recordava-se exactamente do livro que estava a estudar naquele dia 25 de Abril, mais pela peculiaridade do dia do que pelo seu significado, já que a sua ingenuidade não a deixava entender. 

Da candura e estranheza, a deixar-se mergulhar na nova época que esse dia anunciou, foi uma mudança demasiado rápida e fácil. Ninguém a preparou para a abrupta passagem da rigidez na educação paterna e das austeras regras escolares, para uma quase vulgaridade nas normas, valores e costumes em que foi embarcando, dançando e cantando de braço no ar, revolucionando o que nem compreendia.
Alice, mais afoita que a comedida irmã, queria experimentar, tomar o pulso a tudo, receosa que a liberdade tivesse chegado com breve prazo de validade e tivesse de voltar ao recato do seu estudo. 




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